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Romance 'Lá, seremos felizes', de autoria do escritor santareno Nicodemos Sena, é publicado em formato de folhetim, às quartas-feiras

Nicodemos Sena - 28/05/2025

Créditos: Gravura de Manuel Paryat

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Frota Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

CAPÍTULO XX

 

PÂNTANO ESCURO

 

 

 

“O Bem é o amor, está claro. Mas a verdade

é que os homens não se amam. Que será

que os impede de amar?”

Jean-Paul Sartre

(O diabo e o bom Deus)

 

 

 

 

Lázaro desembarcou em Santa Irene com um saldo de 850 cruzeiros, o que, para um pobretão que nem ele, era uma dinheirama que até daria para comprar uma casa. Naquela época, as moedas mais usadas eram as de 1, 2 e 5 cruzeiros; a maior nota era a de 50 cruzeiros; 850 era um monte de dinheiro, encheu a sua saquinha. Isso foi algo muito providencial, pois encontrou a mãe amargando grande penúria. Ela morava com o Carmelo num barraco tão precário que nem merecia o nome de casa. Dava pena ver a parede de barro toda furada e a palha da cobertura só talo. Para escapar da chuva, o Carmelo colocava um encerado sobre a rede dele.

 

Ao ver essa situação, Lázaro foi ao porto, comprou palha e madeira e pagou um mestre que ergueu uma bonita casinha, toda pintada e com portas de madeira no lugar dos japás (1). Adquiriu roupa e rede para a mãe e também para o Carmelo, e ainda ajudou o velho Dico e a velha Mundica. Fez isso e ainda sobrou dinheiro, mas, depois de alguns meses, desempregado, acabou-se o dinheiro. Pensou em voltar para Alenquer, onde o emprego de caixeiro na loja do Oscar Araújo aguardava-o, mas a mãe não o deixou ir, chegando a chorar quando Lázaro disse que ia embora. Com pena da mãe, acabou ficando por lá, de zonzeira, jogando fora uma excelente oportunidade.

 

Mas essa não foi a primeira vez que a mãe o impediu de mudar de vida. Adeus Alenquer, adeus Aurélia!

 

Certo dia, Lázaro foi à casa do velho Dico e este disse que lhe havia arranjado um emprego na loja do turco Nicolau Demétrio, uma firma muito grande, que se estabelecia num sobradão antigo, de esquina, que ocupava quase um quarteirão, na rua do porto, perto do velho trapiche da cidade. O sobradão vivia abarrotado de coisas trazidas de São Paulo em grandes navios. Os estivadores avam semanas desembarcando as mercadorias que chegavam e embarcando os produtos extraídos dos rios e florestas da Amazônia, que seriam beneficiados pela indústria do Sudeste do país: toneladas e toneladas de jutaí-cica (2), couro de jacaré, de capivara e de veado, que um barco da firma trazia do Lago Grande e do rio Tapajós. Tudo chegava e saía de navio; não havia estrada.

 

— Falei ao velho Demétrio que eu tinha um sobrinho desempregado e ele disse que podia te levar lá; não sei qual é o serviço, só sei que é no armazém — disse-lhe o velho Dico.

 

— Então vamos lá — concordou Lázaro.

 

No outro dia, bem cedo, foram à loja do turco, que se chamava “Casa Elza”. Lázaro foi apresentado ao velho Demétrio e ao seu filho Demetrinho.

 

— Você quer trabalhar? — perguntou o velho.

 

Lázaro disse que queria. Pai e filho ficaram olhando-o.

 

— É um rapaz muito trabalhador, disso lhe asseguro, seu Demétrio — adiantou-se o velho Dico.

 

— Oh, não duvido — disse o turco.

 

— E, além disso, ele é crente (3) — acrescentou o velho Dico.

 

— Oh, ele é crente? Isso é bom, pois crente costuma ser honesto. Você é honesto, não gosta de mexer no que é dos outros? — perguntou o velho Demétrio, fazendo com a mão o gesto característico dos gatunos.

 

— Nunca fiz isso — respondeu Lázaro, embaraçado com a franqueza do velho, que beirava à grosseria. Nem teve tempo de explicar que cria em Deus, sim, mas não podia dizer que era um “crente”, na verdadeira e séria acepção da palavra, como espertamente anunciara o velho Dico, o qual, provavelmente, aplicou-lhe esse rótulo com a intenção de granjear a simpatia do turco para o seu pupilo. Nessa época, os crentes eram, ao mesmo tempo, hostilizados e irados pelos católicos, que tinham que itir, mesmo a contragosto, que os crentes eram corretos em seus negócios.

 

Lázaro foi itido e começou a trabalhar nessa mesma hora no monstro armazém, cheio de mercadorias, tanta mercadoria que o pessoal nem sabia o que havia lá dentro. Começou como estivador, o cara que carrega mercadoria nas costas; trabalho muito pesado.

 

Quando o barco da firma — o “Leila” — chegava do interior, chapado de pirarucu, jutaí-cica e cernambi (4), Lázaro e mais quatro estivadores tinham que trabalhar dia e noite descarregando a mercadoria, e depois recarregavam com as mercadorias que iam para o interior. Davam um duro danado, se esfalfavam, levando a carga do porto para o armazém, que ficava do outro lado da rua, e do armazém para o porto, desviando-se dos transeuntes, que o viam vergado sob o peso dos sacos, pois não dava para se esconder — e nem pensava em se esconder, pois nunca teve vergonha de trabalhar. Mas, às vezes, com um saco de 50 quilos nas costas, descalço e sem camisa, melado de suor da cabeça aos pés, Lázaro temia e tremia ao lembrar da garota a quem dissera que era empregado da firma J. G. ARAÚJO, lá de Manaus. “Puta merda! Se ela me vê com esse saco nas costas...”, pensava, arrependido, com um frio na espinha, não que tivesse vergonha de ser visto trabalhando, pois sempre foi trabalhador, pau para toda obra, mas havia mentido — não que nunca mentisse ou que quisesse ser santo, como o sacana do velho Dico. Ao contrário, detestava os que, se ando por santos, eram, na verdade, uns grandíssimos fariseus, como alguns padres católicos que, reprimidos pelo celibato, terminavam por extravasar a libido atrás da sacristia, em seus indefesos coroinhas; ou os falsos pastores “evangélicos” que, não satisfeitos com uma só mulher, como recomenda o apóstolo Paulo em sua epístola aos Efésios 5:32, seduzem, tosquiam e enrabam, sem dó nem remorsos, as crédulas ovelhinhas.

 

E haja trabalho! Carga dia e noite.

 

O serviço de estivador é pesado, e o turco, exigente; poucos aguentam mais do que uma semana.

 

O velho tem a mania de chamar de “filho” para todo mundo. “Vambora, filho! Mete a cara, filho! Puxa isso pra cá, filho! Puxa isso pra lá, filho”, gritava o velho quando algum estivador parava um instantinho para descansar. Meticuloso, acompanha tudo de perto e dá ordens enquanto o filho dele, o Demetrinho, coça o saco no escritório. A mulher é uma turca de uns 50 anos, grande e vistosa, e ainda muito ativa.

 

Lázaro aguentou firme no trabalho; muitos saíram, mas ele ficou. ou um ano naquele murro filho da mãe, mas foi se destacando, os outros saindo e ele ficando.

 

Por essa época, entrou na firma um rapaz do Lago Grande, da família do seu Tote Aquino, o mesmo fazendeiro que o acolheu quando fugiu da casa do velho Teodoro.

 

O rapaz conhecia a mãe de Lázaro, mas este não o conhecia e nem ele ao Lázaro, porque eram muito pequenos quando se viram lá no Lago Grande.

 

O nome do rapaz era Francisco Aquino, o Chico. Por ser filho de um aviado do turco na vila Curuai, tinha a sua importância. Veio do Curuai para ser caixeiro do turco em Santa Irene e mostrou-se tão bacana e trabalhador que logo ganhou a confiança do patrão e ou de caixeiro a gerente do balcão. Quando o “Leila” chegava, já era o Chico que ia a bordo fazer o balanço da mercadoria.

 

Um dia, Chico perguntou ao Lázaro:

 

— Rapaz, de onde tu és?

 

— Do Lago Grande — disse Lázaro.

 

— Do Lago Grande? Exatamente de qual lugar? — tornou a perguntar o Chico.

 

— Do Bom Destino, na Ilha dos Patos — respondeu Lázaro.

 

— Ilha dos Patos? Quem são teus pais? — perguntou de novo o Chico.

 

— Pai, não tenho; mãe, sim, mas não moro com ela — tornou Lázaro.

 

— Moravas com quem no Lago Grande? — insistiu o outro.

 

Lázaro disse que morava com o velho Teodoro.

 

— Com o velho Teodoro? Pô, rapaz, eras meu vizinho! — exclamou Chico.

 

— Quem é teu pai? — agora era Lázaro quem perguntava.

 

— Meu pai? É o seu Tote Aquino — respondeu Chico.

 

— És filho do seu Tote Aquino? Caralho! Então a gente se conheceu! — exclamou Lázaro, sem esconder a satisfação, pois lembrou que havia morado com eles.

 

Chico, que era mais velho do que Lázaro, foi se lembrando:

 

— És o Lázaro, filho da dona Guida? Poxa, rapaz, és meu conterrâneo!

 

Com a amizade do Chico, pouco a pouco Lázaro adquiriu mais segurança e ou a ser incumbido de fazer outros serviços. Vendo o seu desempenho, o velho Demétrio depositou nele tão grande confiança que até as chaves da loja lhe entregava. De vez em quando flagravam um empregado saindo com alguma coisa debaixo da camisa — uma roupa, um sapato... Isso quando o cara não se sujava com um simples pedaço de jabá e era imediatamente expulso como ladrão. Por princípio, Lázaro nunca fizera isso e também nunca precisaria furtar, pois o velho Nicolau Demétrio, como faz a gente rica, dava-lhe as roupas que ele e o Demetrinho usavam um pouquinho e não queriam mais. Dava-lhe também sapato novo, bastando que o seu tivesse um defeito no salto ou um risquinho qualquer, de modo que Lázaro só andava na pinta (5), ele e também o velho Dico, porque, parte do que o turco dava a Lázaro, este reava ao velho, com quem agora morava, pois a mãe e o Carmelo foram embora para Manaus.

 

Um ano havia se ado e ele ali trabalhando para o turco. Tomava café, almoçava e até jantava lá com eles. Às 6 da tarde, depois que todos saíam, fechava as portas da loja e ainda ficava dentro do armazém até às 9, arrumando as coisas para o dia seguinte. Esse não era seu serviço, mas o fazia com prazer, pois gostava de trabalhar. Por isso o velho gostava dele; até dormir na loja podia; chegou a dormir lá duas noites, mas não gostou, por isso não dormia, mas podia. Dormia na casa do velho Dico, mas, às 5 da manhã, já estava batendo na porta dos Demétrio — pá! pá! pá... O velho abria a porta e ele entrava e ava para a loja por uma escada que havia no segundo andar.

 

Certo dia, o Demetrinho o chamou e disse:

 

— Lázaro, depois do expediente, papai quer falar contigo.

 

Lázaro perguntou o assunto.

 

— Não sei, vai lá no escritório — arrematou Demetrinho.

 

Lázaro temeu, pois o velho, para despedir alguém, era daqui pra ali, mas, como não tinha roubado nem matado, foi, no fim do dia, ao escritório e já encontrou lá o filho, o velho, a velha e a filha mais velha, a Elza.

 

Eram 6 da tarde e a loja já estava fechada. Depois de mandar Lázaro se sentar, o velho disse:

 

— Lázaro, tô gostando muito de você e da sua honestidade; de hoje em diante você a a ser empregado da firma, porque antes era apenas um estivador, um encostado; agora, não precisa mais carregar nada fora da loja, a a ser o chefe do armazém.

 

Agora era o Lázaro quem cuidava do armazém. Recebia as mercadorias e despachava. Quando chegavam os aviados da loja, mandava-os para o armazém, onde as notas eram despachadas: sacos de açúcar, arroz, sal, café... Caramba! Lázaro é agora o gerente! Justo. Justíssimo. Sempre teve espírito de trabalho, nunca fugiu da raia. Se fosse preciso carregar alguma coisa na rua, carregava, metia a cara.

 

Quando chegava um barco cheio de mercadoria, o pessoal ava a noite toda desembarcando. Às 6 da tarde, Lázaro fechava a loja, mas continuava lá dentro do armazém; não ia embora enquanto os estivadores não acabassem de descarregar. Sozinho, ali, e os Demétrio dormindo, podia furtar o que quisesse, mas nunca mexeu em nada. Se o desembarque terminava antes do amanhecer, fechava o armazém e dormia o resto da noite lá mesmo ou a bordo. A confiança que depositavam em Lázaro era tanta que, às 6 da tarde, era ele quem fechava as muitas portas e janelas do casarão. Mesmo se alguém fechasse antes, Lázaro tinha a responsabilidade de examinar as portas de uma a uma e ver se estavam bem trancadas. O turco pegou tanta amizade por ele, que, na hora do almoço, o chamava:

 

— Lázaro, ó Lázaro, senta aqui e vem comer!

 

Algumas vezes ia, outras vezes tinha vergonha.

 

 

*******

 

 

NOTAS:

 

1) “Japás”: do tupi, “ya’pá”. Espécie de esteira feita de palmas de várias palmeiras, usada em pequenas toldas de embarcações e para cobrir os interstícios de cumeeira nas barracas, substituindo nestas, por vezes, a madeira para as portas e janelas.

 

2) “Jutaí-cica”: goma elástica do jutaizeiro, árvore nativa das selvas amazônicas, coletada pelos caboclos e levada para o Sul do país para ser empregada na fabricação de vários objetos e utensílios.

 

3) “Crente”: também chamados de “protestante” por seguir a orientação dos “reformadores” da Igreja Católica Apostólica Romana, como Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zuínglio, John Knox e outros, que “protestaram” contra a venda das indulgências (perdão) aos fiéis, o culto às imagens e outras práticas, e por isso foram cruelmente perseguidos pela Inquisição entre os séculos XVI e XVIII.

 

4) “Cernambi”: produto da floresta amazônica, em forma de bolota, resultante da coagulação do leite da seringueira (hevea brasiliesis) pelo método da defumação.

 

5) “Na pinta”: vestido ou calçado com os modelos da última moda.

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?


Capítulo II DENTRO DE UM BREJO


Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO


Capítulo IV ESTRANHO MUNDO


Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA


Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO


Capítulo VII MORTE EM FLOR


Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA


Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO


Capítulo X LÁ, SEREMOS FELIZES


Capítulo XI  TEMPO DE GUERRA


Capítulo XII  ANTI-HERÓI


Capítulo XIII  A COBRA DO LAGO


Capítulo XIV  UM POBRE INFELIZ


Capítulo XV  MESTRE CUCA


Capítulo XVI SOMBRA E SOLIDÃO


Capítulo XVII MISÉRIAS SECRETAS

 

Capítulo XVIII AURÉLIA
 

Capítulo XIX SEM FUTURO

 

 

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.




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