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A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO 6up57

Nicodemos Sena - 29/01/2025

Créditos: Gravura de Manuel Paryat

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

Capítulo III

 

A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

 

 

“Eu conheço os rios bravos, esses rios traiçoeiros;

sei como eles andam, como crescem,

que força eles têm por dentro;

por que lugares am

suas veias.”

José María Arguedas

(Os rios profundos)

 

 

 

 

A noite já ia avançada quando Lázaro escapou do capinzal e varou na fazenda do seu Tote Aquino. Vendo o seu estado, o fazendeiro perguntou o que lhe aconteceu. Diante dele, da mulher e dos filhos, encolhendo-se de frio e vergonha, Lázaro contou a sua desdita, enquanto era acolhido com muito carinho.

 

“Bom mesmo era o seu Tote Aquino”, balbucia o rapaz, subindo, às apalpadelas, a escura e empoeirada escadaria do velho castelo. Em ruínas, meio inclinado sobre o rio, o castelo mais parece um esqueleto fantasma (1).

 

Muitas vezes estivera ali, com os colegas de escola, de tardezinha, após as aulas. Muitas vezes, com uma alegria do tamanho do mundo, correu pela rua que nem louco e, galgando de dois em dois os degraus que levam à torre do castelo, conseguia ser o primeiro a saltar de ponta-cabeça nas águas do rio!

 

Agora se vê só e triste; cada lance da escada parece-lhe um suplício. Ao chegar ao topo, onde os garotos postam-se para dar o seu pulo, senta-se sobre uma pedra e observa a cidade mal iluminada lá embaixo, as ruas cheias de valas, que sobem suavemente do rio e alcançam o amplo platô onde a selva começa. Volta-se para as águas azul-profundas do rio, o “seu rio”, cujo leito, à sua frente, sob o manto plúmbeo da noite, é apenas uma sombra mais densa, riscada de vez em quando pelo farol d’alguma embarcação maior ou pela lanterna de algum bote (2).

 

Por um instante os seus olhos, como que saindo das órbitas, afundam-se na penumbra, e ele experimenta uma indescritível sensação de alívio.

 

“O que mesmo vim fazer aqui?”, se pergunta.

 

E uma voz lhe responde:

 

“Dormir viemos, mas aqui não há noite, dia somente há, noite adormecida no fundo está”.

 

Não enxerga o rosto de quem fala, mas conhece o dono da voz.

 

“Noite num caroço é, mas caroço no fundo do rio está”, torna a voz.

 

“James!”, exclama. “Sim, só pode ser o James, pois quem mais falaria desse jeito desconcertado?”, termina pensando. “James? És tu?”, pergunta.

 

“A noite está num caroço, mas caroço no fundo da água está, fechado”, diz James, a quem ele agora vê, a dois os de si, de cócoras, na penumbra.

 

“O que fazes aqui?!”, pergunta.

 

“Na mão minha, caroço. Noite dentro do caroço está. Manhã vindo. Vou dividir o dia da noite. Queres?”, pergunta James, o primeiro garoto viciado em maconha do qual se tem notícia em Santa Irene.

 

Lembra-se de James, durante o recreio, afastado de todos, de cócoras, atrás do tronco de um cajueiro, no fundo do terreiro do colégio, fumando um cigarro que ele mesmo enrolava e que um dia lhe ofereceu.

 

“Deixa a cabeça leve, a gente vendo coisas. Experimenta!”, diz James.

 

“Eu não fumo”, responde.

 

“Não é cigarro e nem vicia; a gente puxa quando quer ver coisas boas; é como se a gente sonhasse acordado. Vê como é bom!”, insiste o garoto.

 

Sentindo o cheiro adocicado que se desprende do cigarro, mais forte que o do incenso, diz “não” prontamente.

 

“Sei. Ui, ui... Tens medo. Ui, ui... do desconhecido, não é? Te entendo mas não compreendo. Vem, não teme nem treme. Vê, eu puxo... Ui, ui, e estou bem...”, insiste James, com os olhos injetados e as pupilas dilatadas, dando uma funda tragada.

 

“Obrigado, mas não quero”.

 

“Compreendo. Desejo do que não quer, medo de afundar no escuro do sonho, na paz do caroço, dá vergonha. Mas é o único caminho. Vem. Entra!”, diz James, estendendo-lhe o cigarro.

 

“Não, obrigado”, repete.

 

Não pode aceitar. Recorda as palavras da mãe, repetindo as Escrituras: “O diabo, filho, um dia vai te tentar. O danado chegará de mansinho, com voz suave e melosa, e te dirá: — Vinde, pois, e gozemos dos bens presentes e apressemo-nos a usar das criaturas como na mocidade. Enchemo-nos de vinho precioso e de perfumes, e não deixemos ar a flor da primavera. Coroemo-nos de rosas, antes que murchem; não haja prado algum em que a nossa intemperança se não manifeste. Nenhum de nós falte às nossas orgias. Deixemos em toda a parte sinais de alegria, porque esta é a parte que nos toca, e esta é a nossa sorte. Mas não lhe dês ouvido, filho. Ele chega com cara de homem bom, às vezes é um menino ingênuo, mas na verdade é mentiroso e malvado, que vive de atrair os homens para a escravidão. Foge dele, filho, e não fala os teus profundos pensamentos em voz alta, para que o tinhoso não os escute, pois ele não pode ler os pensamentos mas grava tudo o que fazemos ou dizemos.”

 

“Tudo bem; quem sabe se um dia ainda vais me pedir”, diz James, retornando com o amigo, meio cambaleante, para a sala de aula.

 

Pelo resto da tarde, James quedou-se em sua carteira, alheado de tudo e de todos, tossindo de vez em quando. Continuou a fumar maconha nos dias seguintes, à vontade, pois nessa época as drogas ilícitas ainda eram um tema remoto em Santa Irene, que a ninguém empolgava, de modo que o caso só despertou a atenção quando James ou a ficar as tardes inteiras debaixo do cajueiro, já não só, mas acompanhado por outros garotos, o que levou a direção da escola a chamar o pai de James, um antropólogo de São Paulo que desenvolvia pesquisa numa aldeia indígena do alto Maué-açu, entre o Pará e o Amazonas. Depois de ouvir o relato dos professores, o pai fez a sua “mea culpa” ao reconhecer que não vigiara suficientemente o filho nas vezes em que o levara à aldeia, onde o garoto experimentou a diamba (3) e aspirou o ipadu (4), que os pajés usam para estabelecer contato com as divindades.

 

Tão rapidamente James viciou-se nessas substâncias que, ao esgotar-se o estoque que ocultamente trouxera da aldeia, caiu em profunda depressão, da qual só se levantou quando, de São Paulo, através da Empresa dos Correios e Telégrafos, chegaram-lhe os pacotes de maconha e cocaína que antigos colegas, a seu rogo, remeteram-lhe.

 

Em vão a direção da escola, com ajuda de um médico e um psicólogo, tentou recuperá-lo. Afastado e sempre vigiado, James tornou-se um estorvo para os professores e uma preocupação para os pais dos outros alunos, que temiam pela integridade psíquica de seus pupilos. Alguns destes, de fato, já enredados pelo vício, foram transferidos, como medida profilática, para outras escolas, o que mais tarde se revelou um equívoco, pois a dispersão dos viciados só propagou o flagelo. Com o aumento do consumo e a ausência de produção local da droga, James tornou-se o primeiro traficante da cidade.

 

No começo, ninguém suspeitou de nada. Tirando os dias de exame, quando, para ficar mais “ligado” (5), cheirava cocaína e tornava-se agitado, a respiração de James era lenta e suas pálpebras macilentas, como as de alguém que tivesse dormido por muito tempo e ao despertar continuasse dormindo.

 

Ao vê-lo lutar momentaneamente contra o sono, proferindo palavras, frases e períodos de modo desconexo e arrevesado, o rapaz teve compaixão de James.

 

“O que é este barulho? Vamos ver?”, James lhe dizia, apurando os ouvidos. “Eles longe muitíssimo já quando se ajuntaram da canoa meio em abrir do tucumã (6) caroço, ver para o que estava dele dentro”, continuava dizendo, olhando para ele, mas era como se nada estivesse vendo ou visse muito além. “Ai! Nos perdemos! Vês? Eles abriram quando, repentinamente, noite densa. Vem!”, prosseguia James. “Remai! Remai! Vamos embora, irmãozinho, dentro do caroço pra!”, dizia, lento e sereno, mas nos olhos fundos e nas dilatadas pupilas prendia-se um grito. “O barulho, eles ouvindo estão, mas não sabem; pena que ouvidos não ouçam, os ouvidos”, seguia dizendo. Com os olhos faiscando, sussurrava: “Vamos pra baixo do cajueiro? Lá a noite puxamos pra fora ou no caroço entramos. Vem!”

 

Amarelados de tanto esfarelarem fumo nos papelinhos, os dedos de James tremiam como a língua de um faminto diante de um prato de comida.

 

“Dentro do caroço noite linda. Aqui noite sem sonho, vida de inferno caroço de vida”, diz, de cócoras, ao seu lado.

 

“Não é possível! James não está aqui, o pai levou-o para São Paulo”, é o que pensa, enquanto James prossegue: “Eu tu aqui dormir, noite adormecida no caroço. Eu assobio fiu, fiu, fiu e atrás do assobio entro pelo buraquinho do caroço. Vem, fiu, fiu, fiu... atrás do assobio”.

 

“Será que estou louco?”, pensa.

 

“A realidade traz coisas que não voltam mais”, ouve o outro dizer, como que lendo o seu pensamento, mas, reparando na frase bem coordenada, desconfia de que já não é James quem fala.

 

“Noite pra descansar; noite no caroço está. Abro o caroço”, diz James, pondo na boca um coto de cigarro. Riscando o fósforo, pergunta: “Aceita?”.

 

“Não”.

 

“Há um jeito mais fácil de entrar no caroço”, diz James, encovando as bochechas.

 

“Qual?”

 

“Ui, ui, irmãozinho. Ui... Fica de pés e olha do rio pro fundo”, ordena-lhe James e põe-se ao seu lado. “Vendo estás o caroço, embaixo lá?”, pergunta, esvaziando os pulmões até tossir.

 

“Onde?”

 

“Lá!”, aponta James. “Eu já dentro do caroço. Vês? Pra junto vem. Pula!”, sugere.

 

O rapaz se inclina para a massa plúmbea do rio, onde tantas vezes, exultando de alegria, havia pulado, mas não vê nem caroço nem James.

 

Então, quebrando o silêncio, a mesma voz que lhe estivera falando diz:

 

“Manhã vindo está, soltaram a noite e o caroço se abriu. Pula!”

 

O perfume nauseabundo ainda denuncia a presença de James, mas ele havia desaparecido.

 

“James, onde estás?”, chama o rapaz. Para seu espanto, escuta a voz saindo do seu próprio peito: “Ui, ui, irmãozinho, manhã vindo; salto pra dentro do caroço”. E outra voz ordena: “Vai, pula! Nenhum osso teu será quebrado (7), pois a Vida é Una e Indivisível, homem e Espírito vivem integrados. Deixa que nasça o homem-perfeito que vive em ti”.

 

Para que, em vez de cair nas águas do rio, se esborrachasse sobre as rochas que se amontoavam ao pé do castelo, ele só precisava arredar-se um pouquinho para a esquerda. Chega a arredar-se, mas, quando vai saltar, uma voz fininha lhe fala:

 

“Se te lançares contra as pedras, quem saberá que eu existi?”

 

No lugar onde estivera James, o rapaz vê um curumim mirrado, com um olhar muito antigo.

 

“Quem és tu?”, pergunta-lhe. “Sim, és Lázaro, agora te reconheço”, pensa o rapaz, lembrando do menino do porão. “O que fazes aqui?”, pergunta-lhe.

 

“Sou Lázaro, de quem tua mãe te falava”, responde o menino. “Ela me pediu que viesse te lembrar do papel que ela pôs em teu bolso”.

 

Esquecendo-se momentaneamente do sombrio propósito que o trouxera ao velho castelo, volta a sentar-se sobre a pedra e retira o papel do bolso. Diante de uma enfraquecida réstia de luz que chega da rua, consegue ler: “Rua Ernesto Giuliano, 324, São Paulo”.

 

“O que isso significa?”, pergunta.

 

“É pra onde deves ir”, diz Lázaro.

 

“Mas nunca saí de Santa Irene; o que farei em São Paulo?!”, quis saber.

 

“Não desejas ser escritor?”, torna Lázaro.

 

“Sim, quero ser escritor”.

 

“Então vai para São Paulo e enfrenta o desconhecido, realiza o teu sonho. Tua mãe, onde estiver, estará feliz”.

 

“Como tu e mamãe se conheceram?”

 

“Ela me conheceu antes de eu ter nascido”.

 

“Como foi isso?”

 

“Tu mesmo deves descobrir”.

 

“Como descobrirei, se mamãe, a única pessoa que falava de ti, já morreu?!”

 

“A resposta descobrirás em ti mesmo, mas sei de coisas que precisas saber para que te tornes um verdadeiro homem”.

 

“O que sabes que eu não sei?”

 

“Coisas que tua mãe queria te contar e não teve tempo, e outras, que te contou e não compreendeste. Pedaços da minha história perderam-se em tua memória”.

 

“Podes contar?”, pediu-lhe o rapaz, já esquecido de que pouco antes queria dar cabo de sua própria vida.

 

“Então ouve com muita atenção”.

 

E Lázaro, o “menino do porão”, que era ao mesmo tempo tão diferente e tão parecido com este que lhe ouvia, contou a sua história.

 

 

***

 

 

NOTAS:

 

 

1) O autor se refere ao famoso Castelinho construído em Santarém, às margens do rio Tapajós, por um “coronel de barranco” (dono de seringal) na época áurea do ciclo econômico da borracha na Amazônia (1870-1910), o qual resistiu ao abandono até 1966, quando um Alcaide destrambelhado mandou demoli-lo.

 

2) Bote: Pequena embarcação escavada num único tronco de árvore.

 

3) Diamba: é assim que os índios maué chamam a “maconha”, que aram a cultivar após o contato com os escravos trazidos da África, em substituição ao paricá (palavra tupi que quer dizer “árvore com que se faz o cercado para peixes”; em sentido figurado, “peixe” pode ser entendido como “sonho”, daí que paricá também significa “árvore dos sonhos”).

 

4) Ipadu: arbusto cujas folhas, depois de torradas e socadas, transformam-se num pó de coloração verde e pouco espesso, que os índios mascam diariamente, ou aspiram, como o civilizado o faz com a cocaína, substância dele extraída.

 

5) “Ligado”: gíria corrente entre os usuários de drogas, que significa “estar atento, estar em contato”.

 

6) Tucumã: palmeira espinhosa que cresce na planície amazônica. Segundo a lenda indígena “Como a noite apareceu”, em nosso mundo só havia o dia; a noite depois foi enviada dentro do caroço do tucumã.

 

7) O autor reflete em seus textos o conflito étnico-cultural entre a Europa civilizada e a América selvagem, colocando lado a lado mitos indígenas, greco-romanos e hebraicos. “Nenhum osso teu será quebrado”, por exemplo, parece inspirado no Evangelho de São João, capítulo 19, versículo 36: “Nenhum dos seus ossos será quebrado”.

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

 

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

 

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra em pré-venda no site da Kotter Editorial, no formato impresso. Veja AQUI:

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP.




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