MORTE EM FLOR 56b14
Créditos: Gravura de Manuel Paryat.
LÁ, SEREMOS FELIZES
Romance de Nicodemos Sena,
com gravuras de Manuel Paryat.
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Para o “menino” Bernardino Sena,
com gratidão, sempre.
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“Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.”
Dante Alighieri
(Inferno, Canto I)
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Capítulo VII
MORTE EM FLOR
“Os prazeres são momentâneos, epidérmicos. Não duram.
E quem os confunde com felicidade fica sempre
em busca de novas sensações no intuito
de se sentir feliz.”
Frei Betto
(Felicidade foi-se embora?)
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Lázaro e Manuel tornaram-se grandes amigos. Manuel era um ou dois anos mais velho do que Lázaro e, por isso, tinha mais “presença de espírito”, confiança mais em si e gabava-se de suas conquistas, mas não era avarento. Como um irmão mais velho procede com o caçula, Manuel dividia as sobras com Lázaro. Pouco depois, já rapaz, Manuel morreu não se sabe do quê, dizendo uns que de herpes e outros, de sífilis. Essa morte marcou muito o companheiro, pois só por um triz não foi ele o morto, em vez do Manuel.
É que havia certa rapariga em Santa Irene, de nome Elvira, gostosa que só manga madura, que vivia nas festas e todo mundo queria provar. Até um panaca (1) como o Lázaro, que tinha medo de festas e não sabia dançar, a cobiçava.
Numa dessas festas, o nosso garanhão resolveu ir, mas não teve coragem de entrar. Ficou em frente ao salão vendo se sobrava alguma coisa para ele daquele mulherio que chegava e já ia entrando, umas sozinhas, outras com seus homens. Eis que chega a Elvira e lhe vê ali na porta, vem para o seu lado e lhe diz, irada de vê-lo:
— Tu, aqui, Lázaro?!
— Sim, Elvira. Não estou nem aí pra essa festa, vim apenas pensando em te ver — respondeu-lhe Lázaro, cheio de espírito, fugindo do seu feitio tímido e retraído, irando-se ele mesmo de suas palavras.
— Entra comigo? — convidou-lhe Elvira, para surpresa de Lázaro, pois jamais imaginou que a cobiçada Elvira fosse lhe dar confiança.
Nessa época, Lázaro já andava bem-vestido, pois sempre foi trabalhador e comprava boas roupas, mas se achava muito feio e desenxabido, mais do que realmente era.
— Não posso entrar; preciso ir lá em casa ver a mamãe que está acamada — inventou. — Mas vou e logo volto; quando saíres da festa estarei aqui te esperando. Tudo bem? — completou, abusando da imaginação, louco para pegar a Elvira, não só a Elvira, mas qualquer cabocla que naquela noite caísse na sua rede; há tempos andava seco por uma rapariga.
— Tudo bem — concordou Elvira, deixando que Lázaro se aproximasse dela e lhe desse um beijo na face. Bem que o nosso rufião tentou beijar os lábios da rapariga, pensando que, se ela deixasse, poderia avançar com a língua, mas Elvira, que nunca tinha se encostado com ele, desviou a boca e entregou-lhe o rosto — para sorte sua, que assim não teve contato com a sua saliva. Livramento divino, como a seguir se verá.
Elvira desapareceu dentro do salão e Lázaro ficou na porta que nem besta, imaginando a rapariga rodopiando de braço em braço, entregue à macharada e nem se lembrando de sua existência. Ficou ali até acabar a festa, já se preparando para a frustração.
Dito e feito. Depois da última música, os portões do salão se abriram e o pessoal começou a sair. Depois de algum tempo, Lázaro vê Elvira saindo, mas já vinha acompanhada. Já esperava por isso, pois seria muita sorte se uma rapariga daquelas, que ia às festas pensando em arranjar homem, se esfregasse com eles durante horas e terminasse a noite sozinha. O que Lázaro jamais seria capaz de adivinhar — e para tal cena nunca estaria preparado — é que o escolhido de Elvira, para terminar aquela noite com ela na fofura de uma cama de palha ou no balanço duma rede rendada, fosse o sacana do Manuel, que apareceu abraçado com ela. Quando o viram, a rapariga tentou se desviar para o outro lado, mas o Manuel, não sabendo o que Lázaro e Elvira haviam combinado, conduziu a cabrocha para o rumo de Lázaro e, com um piscar de olhos e um sorriso maroto nos lábios, falou:
— Conheces a Elvira?
— Oh, sim. Quem não conhece a Elvira? — respondeu Lázaro, sem disfarçar o tom irônico.
Deixando a rapariga de lado, Manuel cochichou no ouvido do amigo: “Eu sou é foda, cara! Não há cabrocha que resista ao meu charme. Esta noite o na vara a Elvira!”
Lázaro achou que Elvira adivinhara o que o Manuel lhe falava, pois a rapariga continuou com a vista baixa e se deixou levar pelo garanhão, que ainda piscou para ele antes de dar-lhe as costas e pegar o rumo da casa da Elvira, que morava numa choupana, que chovia mais dentro do que fora, na última rua da cidade, de onde ela, pobre e vaidosa, com seu vestidinho de chita e cheirando a patichouli e piripirioca, saía para os bailes de fim-de-semana e para onde voltava de madrugada com o cabra que ela escolhia. O dinheirinho que Elvira recebia dos acompanhantes complementava a merreca que ela ganhava na única fábrica de tecelagem que existia em Santa Irene. Só não cobrava do Manuel, o qual, no dia seguinte, assim que viu Lázaro, foi de novo se gabando:
— Sou mesmo é foda, Lázaro! Nunca paguei pra dormir com uma mulher. Pego a Elvira de graça!
Durante alguns dias Lázaro ficou chateado porque a Elvira naquela noite preferiu o Manuel. Este, ao contrário, cantou sua glória nos dois dias seguintes ao baile, sem adivinhar que a desgraça se manifestaria em seu corpo no terceiro dia, quando, ao voltar do trabalho (Manuel era ajudante de pedreiro), reclamou de cansaço. O velho Dico e a velha Mundica ouviram Manuel reclamar do cansaço, mas não se importaram, pensando que fosse consequência do serviço estafante.
A sós com Lázaro, quando foram dormir, Manuel abaixou o calção e mostrou o caroço vermelho, semelhante a uma crista de galo, que se formava na cabeça de sua pomba. Aquela coisa bizarra fez Lázaro rir, mas, vendo que Manuel sofria, prendeu o riso e tentou animá-lo. Disse-lhe que aquilo podia ser a ferroada de algum inseto ou coisa que o valha, mas os olhos espantados do companheiro de quarto e de aventuras fizeram-lhe suspeitar de que se tratava de coisa mais séria.
— Lázaro, desde ontem sinto febre, febre alta — disse Manuel.
— E se mostrares ao velho Dico? Ele é experiente, deve saber o que é isso — sugeriu Lázaro, lembrando-se do caso que o velhote tinha com uma cabocla gorda e cheia de filhos, que quase todos os dias, depois das 5 da tarde, quando o velho fechava a fábrica de beneficiar arroz, ou mesmo na hora do almoço, quando os empregados iam para casa almoçar, entrava pelos fundos da fábrica e ficava com o velho o tempo suficiente para que ele voltasse para casa esgotado mas satisfeito, pois era daqueles que pensam que “depressa se apanha um rato que só conhece um buraco”. Por esse adágio, no entanto, quase se perde, pois, certa vez, desconfiando dos atrasos do marido, a velha Mundica foi ver o que tanto o prendia na fábrica após o apito das 5. Sem se anunciar, entrou na cozinha da fábrica, justo no instante em que o marido recompunha suas vestes e se afastava da mesa sobre a qual ainda se quedava, com as pernas em “V”, a dita cabocla. Ao seu lado, como um ponto negro e dissonante, via-se um exemplar da Bíblia Sagrada, que pertencia ao velho, que mantinha, diante de parentes e vizinhos, a pose de crente fervoroso.
— Dico! O que significa isso? — perguntou a velha, com voz roufenha e contida, como um vulcão prestes a explodir. Pálido e tartamudeante, o marido ainda teve a “presença de espírito” (para não dizer a “cara de pau”) para falar:
— Não é nada do que estás pensando, querida. Só estava evangelizando esta pobre mulher.
— Não sabia que, para evangelizar, o evangelizador precisa se despir e se enfiar entre as pernas da evangelizada! — gritou a velha, já arrastando o marido até em casa, onde lhe aplicou uns tabefes na cara. Para agonia do velho, que não era homem que se contentasse com uma só mulher, a tal cabocla nunca mais apareceu na fábrica.
— O velho saberá dizer o que tens; mostra a tua pomba para ele, pois nisso ele é experiente — Lázaro tornou a dizer ao Manuel.
— Não, não! — exclamou Manuel.
— Por que não?!
— Tenho vergonha, pois acho que peguei doença venérea.
— Porra, Manuel, doença venérea? Comeste alguém além da Elvira? — perguntou Lázaro, pegando instintivamente na cabeça de sua rola, mesmo sabendo que estava são, pois há tempos não provava uma mulher e agora dava graças a Deus por isso.
— Devo ter apanhado da Elvira essa gonorreia — disse o Manuel.
Apesar de triste por ver seu amigo sofrer, Lázaro suspirou aliviado, pensando que a doença que estava no amigo por pouco não estava nele.
Manuel ainda foi ao trabalho naquela semana, mas a cada dia voltava mais agoniado, mas não procurou ajuda. Só reclamava para o Lázaro, que era mais novo do que ele e nada podia fazer. Até que, numa noite, com pus escorrendo pela virilha e uma febre que não sedia, Manuel enlouqueceu. Começou gemendo, depois chorava e por fim urrava, sem parar, apertando a cabeça (a que encaixa o cérebro, é claro, e não a outra, desmiolada) com as mãos. O velho Dico e alguns vizinhos tiveram que amarrar os punhos de Manuel e assim o levaram ao hospital, mas não encontraram o único médico que havia na cidade. Segundo disseram as enfermeiras, o médico tinha ido de férias para a capital e só voltaria dias depois — tempo suficiente para que Manuel, ainda que medicado pelas enfermeiras, falecesse enlouquecido de insônia e de dor. Na certidão de óbito que o tal médico, três dias depois do sepultamento, emitiu constou como causa mortis “enfarto agudo do miocárdio”. Enfarto uma ova! Manuel morreu foi de boceta estragada, morte que parecia destinada para o Lázaro.
Depois da morte de Manuel, Elvira transmitiu a doença a vários amantes nas noites quentes de Santa Irene, até que, sem que ninguém adivinhasse as razões, ausentou-se do trabalho na tecelagem e de outros recintos, especialmente dos bailes, onde se tornara figura notória. Correu a notícia, à boca pequena, de que Elvira definhava no leito de morte, acometida por doença cujo nome todos os garanhões de Santa Irene conheciam e não ousavam pronunciar, tal o terror-pânico que sentiam só em pensar que a donzela fora ceifada pelo mesmo mal que já militava em seus corpos.
Cinzenta mortalha e angustioso silêncio envolveram a cidade quando o esquife roxo e ordinário de Elvira, sem séquito nem pranteadores, saiu da miserável cabana onde os moços festeiros vinham aliviar-se da canseira dos bailes. Através das arenosas e esburacadas ruas de Santa Irene, o esquife atravessou a cidade até chegar ao cemitério, onde uma suntuosa lápide erguida por um dos amantes de Elvira (rico comerciante) ainda hoje atrai a atenção de homens e mulheres de Santa Irene e até mesmo de regiões distantes, que vêm em romaria para adorar “Santa Elvira”, padroeira dos desenganados.
Diante do velho Dico e da velha Mundica, cheio de vérminas, pequenino e empombado, todos pensam que Lázaro também não teria vida longa. Mas escapou. A velha Mundica fazia ada de chá-de-folha-seca com flor de mamão-macho, amargo como fel, e forçava-o a engolir. Lázaro botava verme, botava verme, e a barriga diminuiu, ficou corado, virou gente, ando a trabalhar com o velho Dico na fábrica de arroz. Nessa época o velho botou o pupilo na escola.
A escola ficava perto da igreja de São Raimundo, num barracão dos padres, coberto de palha, e tinha uma grande casa de cupim na cumeeira. O nome da professora era Isabel. Anos depois, numa das vezes em que Lázaro voltou a Santa Irene, cruzou com a professora na rua, já bem velhinha. Aproximou-se dela e disse-lhe, tocando em sua costa:
— Ô professora...
A mulher olhou-o e falou:
— Quem és tu?
— Sou o Lázaro, estudei com a senhora, lembra?
E não foi que a professora lembrou?!
— Não és o afilhado do velho Dico?
— Sim — respondeu Lázaro, pois todos o conheciam como “filho” do Dico com a velha Mundica.
— Oh, me lembro! Vivias fugindo da aula. Como vais? — perguntou a professora.
O assunto logo se esgotou e despediram-se; nunca mais Lázaro encontrou a professora, que já deve ter morrido, pois isso aconteceu há muitos anos. Esse encontro, tantos anos depois, trouxe-lhe a lembrança do tempo em que viveu com tio Dico e a velha Mundica.
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NOTA:
1.Panaca: indivíduo simplório, abobado, tolo.
LEIA MAIS:
Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?
Capítulo II DENTRO DE UM BREJO
Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO
Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA
Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO
OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI
* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.