LÁ, SEREMOS FELIZES 223nl
Créditos: Gravura de Manuel Paryat
LÁ, SEREMOS FELIZES
Romance de Nicodemos Sena,
com gravuras de Manuel Frota Paryat.
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Para o “menino” Bernardino Sena,
com gratidão, sempre.
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“Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.”
Dante Alighieri
(Inferno, Canto I)
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CAPÍTULO X
LÁ, SEREMOS FELIZES
“Sim, os sonhos e as cigarras flutuam sob as folhas. E era como se todos estivéssemos flutuando juntos. A loucura não tem anteados. E os sonhos estão cheios de loucura e ela, de sonhos.”
Carlos Nejar
(O livro do peregrino)
Lázaro esqueceu o nome da vizinha, mas o de sua filha Raquel jamais esqueceria. Quando a mulher saía de casa, ele e a menina brincavam no quintal. Varinha branca e flexível, três anos mais jovem do que ele, subia nos cajueiros e goiabeiras a fim de apanhar os frutos, deixando entrever o seu sexo de criança debaixo da calcinha rendada.
Um dia ela achegou-se de mansinho, e, sem que ele esperasse, tapou-lhe os olhos com as mãos e pediu que adivinhasse quem estava lhe vendando. Nesse instante, já não parecia infantil. Ele sentiu os pequenos seios da menina amassando-lhe as costas. Querendo eternizar o momento, não respondeu. Duas mãozinhas trêmulas e suadas apertavam seu rosto. Pela vibração dos dedos, sentiu o corpo de Raquel fremir.
Lázaro teve certeza de que Raquel também sentia sua respiração ofegante e a febre que incendiava seu corpo. Ela ainda não sabia cuidar nem mesmo de si, mas se preocupava com o amigo — rosto machucado pelas espinhas, cabelos estorricados pelo sol inclemente do equador e sua magra e desengonçada estrutura. Mas não sabia expressar esse sentimento com palavras. O mesmo acontecia com Lázaro, um nó embargava-lhe a garganta. Jamais esqueceria aquele dia. Antes que encontrasse forças para dizer qualquer coisa para Raquel, a menina aplicou-lhe um beijo na boca. Tantos anos depois, esse beijo ainda queima seus lábios e o enlouquece, pois o levava a crer que era o garoto mais amado entre todos, e, ao mesmo tempo, o mais desprezível. Pois, mal acabou de beijar, Raquel afastou-se correndo e por muitos dias não o procurou. Perplexo, o garoto se perguntava por que sua amiga agia assim.
Raquel se escondia, às vezes, entre as árvores do quintal, e não havia quem a encontrasse, mas, quando menos Lázaro esperava e nos lugares mais improváveis, ela reaparecia.
Duvido que no mundo tenha havido um caso como esse. Lázaro amou Raquel como jamais um menino amou uma menina; dormia e acordava pensando nela, e esse sentimento parecia aumentar a cada nova esquisitice da menina.
Raquel era mesmo muito estranha; tudo nela sugeria mistérios. Para começar, era em tudo diferente da mulher que dizia ser sua mãe. Raquel era branquinha e loura, magra que nem uma varinha de pescar, enquanto a mulher era uma caboclona morena e atarracada. Lázaro não podia afirmar nada sobre possíveis semelhanças entre Raquel e o cego que definhava no fundo de uma rede e que todos diziam ser pai da menina, pois jamais o vira. Comentava-se que o homem, antes de ficar cego, tinha sido um grande fazendeiro que perdera toda a fortuna e tornara-se dependente daquela mulher.
Nessa época, o Carmelo pôs Lázaro para trabalhar na horta da Companhia. Trabalho penoso, ao qual se submetia até com alegria, pensando que no fim do dia, ao voltar para casa, podia tentar, de algum modo, encontrar-se com Raquel.
Certa vez, ao chegar do trabalho, soube que o cego havia morrido e já o haviam enterrado. Pensou que o incidente fornecia até um bom pretexto para ir à casa de Raquel. Ninguém o impediu.
Raquel estava lá. Ele olhava para ela, olhava... mas não a viu chorar pela morte do homem. Não estranhou esse fato, e nem era para estranhar, pois a menina, como já disse, era muito esquisita. Lázaro, no entanto, não devia parecer menos esquisito aos olhos da menina. Certa noite, depois de enterrarem o homem, aconteceu algo que ele nunca saberia explicar.
Consumido pela insônia, o rapaz revirava-se em sua rede. Imagens disformes e presenças sombrias o impediam de dormir. Então, lá pelas tantas, levantou-se da rede e foi apalpando as paredes da casa até alcançar a porta e saiu para a estrada.
Impossível explicar como Lázaro conseguiu entrar na casa da vizinha e ser visto apenas por Raquel. Falando baixo, convenceu-a a ir com ele até o Porto Novo, sem nenhum motivo senão ir até lá. Ele não tem memória do que aconteceu durante o percurso, só lembra de quando já estávam lá. De repente, como se Raquel não tivesse caminhado com ele até lá, Lázaro encontrou-a sentada na proa duma canoa, pálida e mirrada, bem menor do que era; achou isso estranho, mas não deu importância, pois conhecia as esquisitices de Raquel.
— Che rori catu nde rurari (estou muito contente com a tua vinda) — disse-lhe Raquel, numa língua estranha, pondo-se a cantarolar a seguinte cantiga, enquanto Lázaro entrava na canoa (1).
... Arêp arêpê tuérut
Quiát oiquêt-tap-capêi
Arêt arêpê tuérut.
Tradução:
... Vim cantando
De onde durmo vim cantando
Eu vim cantando...
Ele entendia o que a menina dizia, mas se sentiu incapaz de falar nessa língua estranha.
— Fala em português — pediu-lhe.
— Intimahã, ixé maué, não posso, sou maué (2) — respondeu ela, e explicou que, em represália às excursões punitivas que o povo maué sofreu dos portugueses, as mulheres foram proibidas de falar a língua dos invasores.
Lázaro puxou a face de Raquel para si e ela não resistiu; ou a ponta do dedo em sua pele e esta lhe pareceu suave e um pouco fria.
— Olha pra mim — disse-lhe. — Branca é tua pele e louro é teu cabelo, mas teu rosto é oval e teus olhos são amendoados como a pevide do abiu (3). Qual é o teu mistério?
Com um sorriso tímido, como a guia da palmeira que se esconde entre a ramagem, Raquel respondeu:
— Meu mistério? Talvez seja igual ao teu. E, apalpando o rosto do amigo, continuou: — Vês? Debaixo da pele clara tens uma fina camada escura, e teus olhos são negros como os do mutum (4).
— Mamãe disse que meu pai era índio, mas não o conheci, morreu quando eu tinha oito meses — disse Lázaro.
— Do que ele morreu?
— A peste do pântano o matou e também matou meu avô — explicou.
— Também não tenho mãe — falou Raquel. — Essa mulher que me cria não é minha mãe; apenas foi uma das mulheres do velho cego, cujo rosto nunca viste. E, depois de um silêncio, continuou: — Lembro de uma índia de olhar tresloucado, que batia na porta do fazendeiro Shimith, como se o conhecesse há muito tempo, e era escorraçada depois de engolir o bocado que lhe davam na mesma cuia (5) em que comia o Dog, o cachorro de estimação da família, pois a coitada teimava em invadir a casa à procura de “Maíra”, nome que ela me dava e que em língua de índio quer dizer Sol. Sem saber por que, sentia-me atraída pela “louca”, como a chamavam. Sentava em seu colo e via a ternura e o desespero que se misturavam em seus olhinhos amargurados. Quando se sentia ameaçada, farrapos de sons e grunhidos, como um trapo que se rasga, saíam da sua garganta. Eu compreendia o seu desespero e acompanhava-a com iguais grunhidos, que feriam os ouvidos da gente branca. Então me arrancavam dos braços da índia e a peso de pancadas faziam a miserável correr esbaforida rua afora, mas depois de alguns dias ela voltava à procura de comida, do velho e de mim, até que não mais voltou e todos se esqueceram dela, menos eu, que sempre me lembrava, mas não tinha coragem de perguntar quem afinal era aquela mulher que gostava tanto de mim. Um dia, porém, a verdade se revelou: a índia era a minha mãe. Soube que o Sr. Shimith trouxera-a para trabalhar numa de suas fazendas e acabou embuchando-a. Depois que eu nasci, expulsou a infeliz da fazenda e levou-me para a cidade, entregando-me aos cuidados da Madame Onorina, sua esposa, que, apesar do ciúme dos filhos legítimos, tratou-me como filha. Quando Madame Onorina morreu, vim com meu pai, já cego, para junto dessa mulher que hoje cuida de mim.
— Tudo isso é muito triste — disse Lázaro.
— Sim. Muito triste — concordou Raquel. — É como dormir e acordar num brejo fedorento.
— Nossas histórias são bem parecidas.
— Há uma desgraça na origem, entranhada na alma.
— Uma desgraça que a gente, por mais que se esforce, não consegue esquecer.
— E nos faz rejeitar a nossa parte derrotada e odiar a vencedora.
— E também amar e odiar a mesma pessoa...
Interrompendo o que o menino Lázaro, lá de dentro de mim, dizia-lhe, Raquel perguntou subitamente:
— Ereru nde caramemó? Trouxeste as malas?
“Que malas?”, pensou Lázaro, enquanto a menina seguia falando como se não o escutasse.
— Rerecó será apacuitáua? Trouxeste os remos? — insistiu a menina.
“Que remos?”, pensou Lázaro.
— Erea-pucui ro! Então rema! — ordenou Raquel, estendendo-lhe um remo que ela mesma trouxera.
— Mame queeté? Para onde?
— Vês?! Renhehê tupi indê ikó! Já estás falando tupi! — exclamou ela.
— Eu quero falar, mas não sei; aba nheenga (fala de índio) é muito diferente — disse Lázaro, em português, mas a menina escutava em tupi.
— Olha só o que disseste: “Aba nheenga” (língua dos índios). A língua dos anteados corre em teu sangue, Lázaro! Entendes o que tô dizendo?
— Pá. Sim.
— Então rema! Erea-pucui ro! Vamos para o Noçoquem (6), onde mamãe plantou o pé da castanheira — ordenou Raquel.
Lázaro pegou o remo e começou a remar.
— Sentes o cheiro que vem de lá? — tornou Raquel, apontando com o beiço, à maneira dos índios, para a escuridão da outra margem do rio.
— Sim, tô sentindo — disse o companheiro, e continuou remando.
— É o perfume da castanheira — disse Raquel. — Sabes que o Noçoquem é muito iporanga (bonito)? Guaraci, o sol, brilha. Ibaca, o céu, é azul. As flores têm belo perfume. Iaci, a lua, é murutinga reté poranga (branca e bonita). No Noçoquem tem tantas coisas catu (boas). Tem tapirusú (tapir grande). Tem suasú (veado). Tem tajasú (porco do mato). Tem agutí (cotia). Tem jacu, mutum, macacuá, inambu-uasú, picuí e outros pássaros. Tem também paarati, acará-uaçú, acará-peba, acará-pitanga, acará-mirim, acari, aracu, jaraqui, pirapitinga, matrinchã, curimatá, pacu, pirarucu, piraíba e outros peixes... Ah, quanta coisa boa tem o Noçoquem. Rema, Lázaro! A coema-piranga (aurora) já vai chegar, temos pouco tempo. Quando derem pela nossa falta, virão nos buscar. Rema, Lázaro, fujamos de Cicantá (7), esse lugar maldito, que de tão ruim significa breu. Cheguemos logo ao Noçoquem! Lá, as terras são férteis e as matas cheias de caças; na sombra da frondosa castanheira descansaremos. Rema, Lázaro! Rema!
— Tô remando, mas parece que a gente não sai do lugar; acho que tô sonhando — disse-lhe Lázaro.
— Então sonha, Lázaro, pois sonho que é muito sonhado um dia acontece.
E a cunhantã (8) tornou a cantar a velha cantiga:
... Arêp arêpê tuérut
Quiát oiquêt-tap-capêi
Arêt arêpê tuérut.
Tradução:
... Vim cantando
De onde durmo vim cantando
Eu vim cantando...
Lázaro imagina uma maneira de retornar ao seu acanhado mundo. Na verdade, não quer voltar à vida mesquinha que leva nas mãos do Carmelo. Mas precisa voltar. A miserável vida em Cicantá parece mais segura do que essa viagem destrambelhada no meio da escuridão. Ao seu lado, parecendo muito confiante, Raquel olha fixamente para o outro lado do rio e aponta, como que divisando algo que só ela consegue enxergar.
— Mahata remahã? O que vês? — perguntou Lázaro.
— O Noçoquem! Ele está lá. Já enxergo a frondosa castanheira! Olha pra ela, Lázaro! — diz Raquel, apontando para a noite densa.
— Não quero olhar! — responde o companheiro.
— Por quê? Tens medo? Recequiié será?
— Sim, tenho medo.
— Não tenhas medo, lá não tem fome nem dor e ninguém teme a morte, pois Deus levou o primeiro mundo dos índios para o céu, e os que ficaram (sucuris, surucucus, jiboias, os encantados) resolveram fazer pra eles outro mundo do corpo da própria irmã. Se ela ficasse com a face para o céu, nunca morreriam; mas ficou com a face para a terra. Então ela disse aos irmãos: “Vocês me fizeram terra. Está bem. Pois vos chamarei, sempre, para minha companhia”. E assim, tranquilos, aguardam a hora de se encontrarem com a irmã. Aqui em Cicantá é diferente: quem não teme a morte é taxado de acanga uiua (louco), mas tolo é quem fica em Cicantá, onde há fome e peste e o ar é parado. Vamos para o Noçoquem, Lázaro! Oh, desejo comer as belas frutas que existem lá!
Continuando a remar, Lázaro diz para si mesmo: “Ela sou eu, tudo é o meu pensamento”.
Mas Raquel é forte, muito forte; o rapaz não consegue controlar o seu desejo, que era mais forte do que ele e vai levando-o às regiões mais profundas de si mesmo. Rema e pensa num meio de escapar do pesadelo.
— Sabe, Raquel, não as de um fantasma que me atormenta a cabeça. Larga-me! Noçoquem não existe.
— Existe sim! Lá está ele! Não vês os pássaros que tem lá? Guairaietá ibaquipe obebé. arinhos no céu voam. Oh, como são lindos os pássaros do Noçoquem!
— arinhos que nada! Vazio imenso, solidão e desespero é o que há — replica-lhe Lázaro.
— Alegra-te, Lázaro!
— Não há motivo para alegria. Noçoquem é loucura!
— Loucura é a vida besta que levamos em Cicantá. Lá é aepe iporanga reté (muito bonito). Se me levas para o Noçoquem, caso contigo.
— Eu remo, mas a canoa não sai do lugar!
— Se pensares “eu quero ir para o Noçoquem”, então nós iremos.
— Mas eu não quero ir para o Noçoquem!
— Queres ficar para sempre neste lugar fedorento? O Noçoquem é melhor. Doce é seu perfume e gostosas suas frutas! Olha pelo menos uma vez para o Noçoquem, Lázaro!
— Não quero olhar!
— Se eu ficasse aqui contigo, o que me darias? Tens vinho? Tens Pão?
— Não, não tenho.
— Tens linha de anzol?
— Não, não tenho.
— Tens panacu (cesto), patuá (caixa), mirá péua (mesa), íra (algodão), amaniú (prego), itapúã será?
— Não, não tenho.
— Tens facho de pescar, corda do arco, o arco?
— Não, não tenho.
— Afinal, rerecó será mahã catu, tens alguma coisa boa?
— Sabes que não tenho nada de bom, intimahã xá recó mahã catu, sou pobre e desprezível.
— Não fala assim. Rema! Se não me levares para o Noçoquem, outro me levará.
— Loucura! Quem foi ao Noçoquem jamais voltou para contar como é lá.
— Entendes agora por que me acham esquisita? Sou do Noçoquem, lá nasci, só lá terei cura. Queres saber quem eu sou?
Enquanto Lázaro rema, Raquel conta-lhe a sua história.
— Todo lugar tem seu dono — começou dizendo. E continuou: — Mamãe era dona do Noçoquem, um lugar encantado onde plantou uma castanheira. Ela não tinha marido, mas toda gente da selva, homem ou bicho, queria viver com ela, pois era uma cunhã-mucu porã-poranga (moça muito bonita). Os seus a queriam sempre em sua companhia, porque conhecia as plantas com que preparava os remédios. Mas certo dia uma cobrinha conversando com outros animais disse que mamãe acabaria sendo sua esposa. Quão ardilosas são as cobrinhas! Pois esta espalhou pelo caminho, por onde mamãe ava todos os dias, um perfume que alegrava e seduzia. Quando mamãe ou, aspirando o perfume, disse: “Diacho! Que perfume agradável!”. E isso foi sua desgraça, pois a cobrinha, que estava próximo, disse a si mesma: “Eu não disse? Ela gosta de mim!”. E, correndo, estirou-se mais adiante para esperar a presa. Quando mamãe ou ao seu lado, a pequena serpente tocou levemente numa de suas pernas, ficando ela logo prenhe — porque antigamente uma mulher olhada por alguém logo engravidava, fosse homem, animal ou árvore que a desejasse para esposa. A tribo não aceitava que mamãe se casasse com alguém; por isso, quando apareceu grávida, ficaram furiosos. E falaram, falaram e falaram, dizendo que não queriam vê-la com filho. Mesmo assim, numa barraca feita por ela mesma, nasci. Vendo que a tribo rejeitava a minha mãe, a “cobrinha” levou-a para viver com ela numa de suas fazendas, onde balbuciei as minhas primeiras palavras e desejei comer as frutas do Noçoquem, mesmo não tendo lembrança de como elas eram, pois saí de lá muito novinha. “Filhinha, um dia voltaremos para o Noçoquem, de onde nunca devíamos ter saído”, dizia mamãe, e falava da famosa castanheira que ela, antes de me sentir nas entranhas, havia plantado, para que um dia eu comesse os seus frutos. Mas, como sabes, papai expulsou a mamãe da fazenda e levou-me para a cidade; nunca mais soube dela. Agora, se eu comer o fruto da castanheira, deixo de ser esquisita. Leva-me para o Noçoquem, Lázaro! Lá, seremos felizes.
— Não posso, tenho medo — disse Lázaro.
— Iaquaimuçáua! Tolice! Vês? Lá, tudo é real! O dia amanhece e os pássaros cantam na copa das árvores.
Lutando contra o medo, Lázaro parou de remar e olhou para onde Raquel olhava; em vez da radiante aurora do Noçoquem, enxergou a claridade mortiça de mais um dia que ia chegando a Cicantá; em vez do canto da arada no cimo da castanheira, ouviu o lúgubre piar do acurau (9), seu velho conhecido, que caçava insetos nas árvores do quintal.
Ao longe, muito longe, um galo começou a cantar, sendo imitado por outros galos, e seu canto trazia esperança, mas a respiração resfolegada do Carmelo, a poucos os, reconduziu-o ao mundinho obscuro e acanhado ao qual parecia estar condenado. Ainda ouviu Raquel, ao longe, dizendo: “Vem comigo para o Noçoquem. Lá, seremos felizes”. E flagrou-se falando: “Xe anhõ, xe sieim, i abaib xe rapé” (estou só, estou órfão, difícil é meu caminho).
Estremeceu ao pensar que talvez estivesse louco, pois se lembrou de que há pouco remava na proa de uma canoa que não saía do lugar, e, agora, na sua velha e puída rede, sentia-se igualmente preso. “Será que eu existo?”, perguntou a si mesmo, em pensamento. Então gritou, saltando da rede: “Raquel, espera! Vou contigo para o Noçoquem!”
— Te aquieta, menino! Ainda é noite! Deixa de besteira! — ralhou o Carmelo, mexendo-se em sua rede.
Lázaro voltou a deitar-se, mas sentiu que seu corpo saía estrada afora até alcançar a beira do rio, onde encontrou a mesma canoa, mas estava vazia. “Raquel foi-se embora”, balbuciou tristemente.
Cruzando com os vultos que dia prestes já andavam pelo Porto Novo, voltou para casa.
Está só. Não se lembra do que aconteceu pelo caminho. Ao deitar-se, pensou: “Bruma, bruma, bruma! Será isso a existência?!”
Pelo resto da noite ouve o respirar pesado do Carmelo.
“Foi tudo um sonho”, conclui, aliviado. Mas, novamente, sobressaltou-se ao ouvir uma voz tão nítida que lhe perfura os ouvidos:
— És Lázaro? — pergunta a voz.
— Sim — responde Lázaro.
— Te trouxe um recado — diz a voz.
— Da parte de quem? — pergunta o rapaz.
— De Raquel — torna a voz.
— Onde ela está?
— Longe, muito longe.
— O que ela quer?
— Nada, pois onde está de nada precisa.
— O que queres me dizer?
— Raquel nos deixou, libertou-se do sonho, renasceu!
— Não é possível! Ainda há pouco estava comigo.
— Engano teu, meu caro; há muito foi enterrada — diz a voz.
— Como se deu isso?
E a voz contou o que aconteceu com Raquel.
... Arêp arêpê tuérut
Quiát oiquêt-tap-capê
Arêt arêpê tuérut.
Tradução:
... Vim cantando
De onde durmo vim cantando
Eu vim cantando...
A canção nascia no coração da mãe e saía de sua boca de um modo tão triste, mas ela estava feliz, pois a sua filhinha, que havia partido, retornou para ela. De manhã, Lázaro soube que Raquel havia morrido naquela noite, de uma doença que ninguém conhecia, e, à tarde, foi enterrada. Pelo resto de sua vida levaria essa menina dentro de si para todos os lugares.
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NOTAS:
1) No sonho de Lázaro, Raquel fala tupi antigo.
2) Maué: etnia indígena do tronco tupi, cujos remanescentes vivem hoje ao sul da ilha de Tupinambarana, no Estado do Amazonas.
3) Abiu: fruto do abieiro, de baga negra e oblonga, recoberta por fina polpa amarela e doce.
4) Do tupi mi’tu: Ave galiforme de coloração preta, barriga e coberteiras inferiores da cauda vermelhas, ponta da cauda branca, base do bico avermelhada e olhos muito negros e amendoados.
5) Do tupi, Ku’ya; vaso feito do fruto maduro da cuieira, depois de esvaziado do seu miolo.
6) Noçoquem: Lugar mítico para o povo maué, correspondente ao Éden.
7) Cicantá: espécie de Inferno ou Purgatório na mitologia maué.
8) Cunhantã: Moça, em tupi.
9) Acurau: do tupi, wacurawa: ave noturna que se alimenta de insetos.
LEIA MAIS:
Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?
Capítulo II DENTRO DE UM BREJO
Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO
Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA
Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO
Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA
Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO
OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI
* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.