NA SOLEIRA DA PORTA 1z1w13
Créditos: Gravura de Manuel Paryat
LÁ, SEREMOS FELIZES
Romance de Nicodemos Sena,
com gravuras de Manuel Paryat.
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Para o “menino” Bernardino Sena,
com gratidão, sempre.
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“Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.”
Dante Alighieri
(Inferno, Canto I)
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CAPÍTULO VIII
NA SOLEIRA DA PORTA
“Ontem e anteontem eram iguais, ele não mais sabia distingui-los; um acontecimento de três dias antes, ou de vinte, acabava por parecer-lhe igualmente distante.
Assim se dava, à sua revelia,
a fuga do tempo.”
Dino Buzzati
(O deserto dos tártaros)
O velho Dico sabia que a mãe de Lázaro, sua sobrinha, morava em Belterra, pois certa vez a visitara. Mas como enviar “o menino” se, além da estrada, que na verdade não ava de um caminho, havia apenas a via marítima? Aos sábados e segundas-feiras, o barco “Deoclécio” saía de Santa Irene e ia para Belterra, pequena vila construída sobre um platô, a cujo porto, de nome Porto Novo, por distar uns 8 quilômetros, ia-se de carro.
Certo dia, o velho perguntou se Lázaro queria ir para a casa da sua mãe. Lázaro disse que queria.
— Mas é longe! — avisou o velho.
— Mesmo assim, vou — falou o menino.
Então o velho procurou o comandante do “Deoclécio”, pagou a agem e disse-lhe:
— Leva esse menino até o Porto Novo, e de lá encaminha ele para Belterra, onde ele vai procurar sua mãe.
Durante a viagem, que durou um dia inteiro, o menino chorava, sem saber o que encontraria pela frente. Ia novamente levantar a vida e andar daqui pra acolá, sem mãe, sem ninguém, sem dinheiro para pagar o transporte da beira até lá em cima, quanto mais para voltar para Santa Irene, se fosse preciso.
Naquele tempo Belterra tinha um movimento danado. O barco chegava trazendo mercadorias e o povo corria para o porto. Era carro de lá para cá e de cá para lá, mas só carro de americano (1). Carro particular, de brasileiro, só o caminhão antigo, muito velho, do Manuel Rufino, filho do comerciante Raimundo Silva.
Novamente sozinho, Lázaro ficou lá na beira, com seu saquinho de pano nas costas. O motor que o trouxe voltou para Santa Irene. De pés, lá no porto, sem dinheiro nem nada, via o pessoal se preparando para subir para Belterra. Não demorou e apareceu o caminhão do Manuel Rufino, um cara bacana, alegre e falador, que vivia na brincadeira com todo mundo. Por ser dono do caminhão, Manuel era ali um cara importante. O pessoal que chegava de Santa Irene subia para Belterra empoleirado no caminhão, e o pessoal lá do alto descia para fazer compras, principalmente de peixe, no Porto Novo.
Lázaro se meteu no meio do pessoal e também se empoleirou na carroceria do caminhão. E toca a subir para Belterra, pela serra inclinada, estrada arenosa, o caminhão peidando para subir e o sol cozinhando os miolos. Depois de uma hora, o caminhão chegou ao Posto Fiscal da Estrada Um (1), bem no centro de Belterra, onde ficava o comércio.
Com a chegada dos norte-americanos, em 1934, Belterra tornara-se um povoado relativamente grande. Naquele dia, desembarcou muita gente e quase todos subiam para Belterra. O Manuel Rufino distribuía ageiros por todas aquelas estradas; onde o sujeito morava, lá deixava, e cobrava a agem.
Encolhidinho no canto da carroceria, quietinho, Lázaro pensava consigo: “Não sei onde estou; vou rodar nesse carro até me deixarem por aí; vou rodar, rodar, rodar... e não vou ter onde ficar, alguém vai ter que me acolher”.
E foi isso que aconteceu.
Manuel Rufino começou a rodar, rodar... e deixava ageiro aqui, ali, acolá. Quando chegaram à Estrada Oito, lá muito em cima, só tinha três ageiros no carro, mas logo esses três também desceram, restando apenas Lázaro no caminhão. Então o Manuel Rufino parou o veículo e perguntou:
— E tu, moleque, pra onde vais? Onde vais ficar?
Lázaro respondeu que não sabia.
— Como não sabes? Porra! — bradou o Rufino.
— Não sei — repetiu o menino.
— Como não sabes, rapaz? De onde tu és? De onde vens? — insistiu Rufino.
— Vim de Santa Irene.
— Onde vais ficar?
— Não sei.
— Quem é teu pai?
Lázaro disse que não tinha pai. Mãe, em Belterra, sabia que tinha; ela vivia com um homem, mas não sabia onde moravam.
— Como é o nome do homem que vive com tua mãe? — perguntou Manuel Rufino.
O velho Dico dissera a Lázaro que o nome do homem que vivia com sua mãe era Carmelo.
— Carmelo — respondeu Lázaro.
— Porra, peste! Então és enteado do Carmelo?!
Manuel Rufino conhecia o homem que vivia com a mãe de Lázaro, o tal Carmelo. Lázaro depois soube que o Carmelo era freguês do comércio do Manuel Rufino. Comprava fiado e, no fim do mês, quando os norte-americanos lhe pagavam o salário, as dívidas já eram descontadas lá mesmo no escritório da Companhia.
— Então fica aí, sei onde eles moram, vamos ar lá; quando chegar lá em cima, te deixo.
Pensando que ia enfim se encontrar com a mãe, Lázaro ficou alegre. O caminhão foi rodando, rodando... De repente, parou.
— Olha aí! Chegamos à casa da tua mãe! — gritou Rufino. — Tua mãe mora naquela casa! Podes ir. Depois acerto a agem com o Carmelo! — ordenou.
Naquela estrada as casas eram todas de palha. Lázaro pegou o seu saquinho de pano e desceu do carro. Foi andando no rumo da casa que o Rufino disse ser a de sua mãe. Na frente da casa parou, sem coragem para bater na porta. Ali, de pés, ficou pensando: “Será mesmo que é a casa da minha mãe?”
Parecia uma casa de peão, simples como as que havia ali, com piso de chão-batido e paredes de palha. Não era como as outras que viu quando avam noutra estrada, de madeira e cobertas de telhas, mas era uma casinha asseada e boa. Lázaro soube depois que as casas melhor equipadas eram dos funcionários mais graduados da Companhia.
Ficou ali, na frente da porta, escutando e com medo de bater. Ansioso, perguntava a si mesmo como seria a mãe. Depois de um tempo impossível de mensurar, escutou um barulho lá dentro. Criou coragem e bateu: Pá! Pá! Pá! A primeira vez, e nada. Bateu a segunda vez e ouviu uma voz de mulher perguntar:
— Quem é?
— Sou eu! — respondeu o menino.
Depois de algum tempo, a dona da voz apareceu na porta e ficou olhando para o pirralho que estava à sua frente.
Era difícil crer que aquela fosse a sua mãe. Ficou irando a mulher que via à sua frente. Era alta, tinha a testa larga e o nariz afilado, bonita mesmo.
— Quem és tu, menino? O que queres? — perguntou a mulher.
Um nó na garganta impedia Lázaro de falar. A mulher tornou a perguntar de onde ele era.
Essa era a pergunta que todos lhe faziam, onde quer que chegasse: De onde és? Ao que parece, todos esperam que a pessoa seja de algum lugar, o que é muito justo; não há uma só pessoa que não venha de algum lugar. Mas, nessa porra de vida, rolando de um lugar para outro, sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem coisa nenhuma, Lázaro não era de nenhum lugar. Pensou que, se não dissesse logo de onde ele era, mesmo que fosse um lugar inventado, aquela mulher que diziam ser sua mãe poderia bater a porta e virar as costas para ele.
Aterrorizado por esse pensamento, Lázaro disse rápido, meio gritando:
— Eu sou de Santa Irene!
— De Santa Irene? — repetiu a mulher, desconfiada.
— A senhora é a Dona Guida? — perguntou o menino.
— Sim, sou a Guida — confirmou a mulher.
Então Lázaro disse:
— Pois eu sou seu filho.
— Meu filho?! Quem tu... és? Como é teu nome?
— Meu nome é Lázaro — respondeu o menino.
Quando disse que era o Lázaro, a mulher deu um o à frente e repetiu:
— Tu és o Lázaro?! Eu não acredito! Quem te mandou aqui?
— O tio Dico.
Então a mulher se abraçou com o menino e o menino com a mulher, e, como se o mundo tivesse parado de girar, choraram juntos.
O Carmelo estava para o serviço. Quando ele chegou, lá pelas 6 da tarde, a mulher apresentou-lhe o Lázaro. Carmelo sabia que ela tinha quatro filhos espalhados pelo mundo.
Até então, indo de um lugar para outro e submetido aos caprichos de seus “protetores”, Lázaro havia sofrido muito, mas a fase mais triste da sua vida ainda estava por vir, nas mãos do Carmelo.
NOTAS:
1) O magnata norte-americano Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística, resolveu investir no Brasil em plena II Guerra Mundial (1939-1945). Com o que havia de mais moderno, organizou plantações da hevea brasiliensis, mais conhecida como a árvore seringueira, de cujo leite ou a produzir a borracha necessária para a fabricação dos pneumáticos usados nos carros de guerra; dessa atividade surgiram as cidades de Belterra e Fordlândia, no rio Tapajós.
2) Os norte-americanos chegaram a Belterra e foram dando número às ruas.
LEIA MAIS:
Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?
Capítulo II DENTRO DE UM BREJO
Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO
Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA
Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO
Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA
OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI
* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.