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NAS MÃOS DO CARMELO 3k13a

Nicodemos Sena - 12/03/2025

Créditos: Ilustração: Manuel Paryat

 

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Frota Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

CAPÍTULO IX

 

NAS MÃOS DO CARMELO

 

 

 

“Além de limitados, somos também impotentes

diante das misérias humanas

como a morte e a ignorância.”

Blaise Pascal

(Pensamentos)

 

 

No começo, tudo parecia bem. Viviam no meio de um monstro seringal. Uma casinha aqui, outra ali, outra mais adiante, pelas beiras daquelas estradas que cortavam as plantações de seringueiras (1). Lázaro levava a vida até na maciota. Todo dia ia buscar água num balde grande e pesado, como mandava o Carmelo, mas não se queixava, era até uma diversão. Os ventos, porém, mudaram. O Carmelo ou a obrigá-lo a tarefas além das suas forças e ai dele se não obedecesse! O Carmelo bebia cachaça — melhor dizendo, ninguém sabia se bebia mesmo ou se fingia beber; mal encostava a boca no copo, já bambeava as pernas e caía, mas logo se levantava, brabo, quebrando pratos, copos, tigelas e tudo o mais que via pela frente, coisas que ele mesmo comprava.

 

Além da mãe não poder ter nada, nessas ocasiões ela apanhava muito, levava tapa na cara e pontapé na bunda, despencando com os peitos no chão. O Carmelo ria — hé! hé! hé! Um riso mau. Lázaro via a tudo e nada fazia.

 

O que Lázaro poderia fazer? O homem tinha um punhal de dois gumes, que ele mesmo fizera na oficina da Companhia. De dia e noite vivia com o punhal na cintura, metido na bainha; dormia e acordava com aquele punhal.

 

Lázaro também apanhava. Não digo que merecesse, mas moleque não é flor que se cheire, fazia das suas, aprontava, mas não era só por isso que o homem lhe batia.

 

Nessa época, uma tia de Lázaro, conhecida como Ninita, veio morar lá embaixo, na beira do rio, no Porto Novo, a duas horas de Belterra. Trouxe com ela seus dois filhos e o vô Figueira, pai do seu falecido pai. Veio também o Chumbinho, um dos três irmãos de Lázaro, que ficara com vô Figueira depois que a peste matou seu pai Pachico e vô Dino, pai de sua mãe, e quase a metade da população da Amazônia.

 

Lázaro cresceu ouvindo todo mundo falar das coisas terríveis que aconteceram no tempo da peste. Diziam, por exemplo, que a mortandade foi tanta que as pessoas que estavam levando na canoa alguém para enterrar num daqueles cemitérios que existem na beira dos rios, avam mal e, antes de chegarem ao destino, morriam ali mesmo na canoa, que seguia viagem sozinha, levada pela correnteza, rio abaixo, e assim eram encontradas por alguém ainda não ferido pela peste e que lhes dava um “bom destino” — talvez por isso, nessas beiras de rio e regiões mais centrais da Amazônia, ainda hoje, existam tantos lugares com o nome de Bom Destino.

 

Lázaro sabia que havia esse irmão chamado Chumbinho, mas não o conhecia e também não conhecia a tia Ninita e nem o vô Figueira ou qualquer outra pessoa da família, pois, quando o pai morreu, ainda era muito pequeno e a mãe largou-o nesse mundo de meu Deus. Sabia que tinha irmãos porque a mãe lhe contara e porque às vezes, quando menos esperava, o Chumbinho subia a serra e aparecia em sua casa e aí ficava até a mãe mandá-lo de volta, muitas vezes Lázaro descendo a serra com ele, pois ficaram muito apegados.

 

O Porto Novo era muito longe; tinham que descer a serra por um caminho deserto. Na ida, iam juntos; na volta, Lázaro vinha sozinho, se borrando de medo, pois o caminho ava no meio de um cemitério. Mesmo assim, certa vez, fugiu da mãe e foi sozinho, enfrentando o caminho deserto e o cemitério, até chegar à casa do Chumbinho, só para ficar um pouquinho com o irmão e os primos Ferreira e Felisberto, filhos da tia Ninita, moleques feios que nem a praga mas amigos até debaixo d’água, que trepavam nas árvores e pulavam de galho em galho que nem macacos e, se algum moleque queria bater nele e no Chumbinho, os defendiam, principalmente o Ferreira, o mais velho, que não levava desaforo para casa.

 

Fazia um ano que Lázaro estava em Belterra com a mãe quando ela adoeceu: não defecava nem urinava. Belterra tinha bons médicos, os médicos norte-americanos da Companhia, porém a mãe foi levada ao hospital diversas vezes e ninguém descobria a sua enfermidade. Gritava que dava dó, chegando ao ponto de o Dr. Gileth, chefão do hospital, chamar o Carmelo e informar que não tinha jeito, podia levar a mulher para casa, ela ia morrer. O Carmelo obedeceu, mas, em vez de cuidar da coitada, judiou ainda mais dela. Dizia que ela era uma cruz que ele tinha que carregar e só lhe dava trabalho, não prestava para nada; e empurrava a infeliz, chegando a bater nela ali mesmo, dentro da rede.

 

Nesses momentos, Lázaro sentia muita raiva, mas se via pequeno e impotente, nada podia fazer. Então a tia Ninita, por intermédio de um barqueiro que ia para o Lago Grande, mandou recado para a vó Gitoca, mãe de Guida, contando-lhe a triste situação.

 

Dias depois chegou ao Porto Novo um batelão do velho Teodoro, marido da vó Gitoca, para buscar a Guida. Então trouxeram a coitada de Belterra e a colocaram no batelão, que a levou para a casa da vó Gitoca.

 

Lázaro ficou sozinho com o Carmelo em Belterra, sofrendo ainda mais na mão dele, pois mandava Lázaro capinar o quintal, limpar a casa, cozinhar e levar o almoço para ele lá no trabalho, e, à noite, tinha ainda que lavar a roupa suja do Carmelo. E ai se atrasasse sequer um minuto a entrega da comida: levava uma surra quando o Carmelo voltasse para casa, à noite.

 

O malvado batia forte e com prazer, e ficava rindo. No seu desespero, Lázaro às vezes fugia para o mato; então uma vizinha, que morava do outro lado da estrada e tinha três filhos, dava-lhe comida.

 

aram-se dois anos sem que a mãe voltasse ou enviasse notícia, não se sabendo se estava viva ou morta. E Lázaro lá com o Carmelo. Às vezes, o Chumbinho aparecia por lá, trazendo-lhe esperança e alegria, mas estava para nunca mais aparecer, pois nessa época já andava magrinho e barrigudo, tinha o vício de comer terra e sabão e era muito maltratado; vô Figueira e tia Ninita não cuidavam bem dele.

 

De vez em quando Lázaro fugia do Carmelo e ia lá com o Chumbinho. O Carmelo, fulo de raiva, ia buscá-lo e enchia-o de porrada pelo caminho.

 

Lázaro, pelo resto da vida, não se esqueceria das vezes em que foi atrás do Chumbinho, pois no caminho entre Belterra e o Porto Novo havia aquele cemitério, que era o seu terror. Temendo a noite, saía de casa antes do meio-dia e metia os pés na carreira, mas depois da serra a estrada ficava cercada de mato. Um dia se atrasou e a noite pegou-o a meio caminho. Deviam ser umas 7 da noite quando chegou ao maldito cemitério. Puta merda! Não tinha jeito, não havia outro caminho, ia ter que enfrentar o cemitério. Foi andando devagar, com os pelos arrepiados, e, quando chegou ao meio do cemitério, veio-lhe aquele negócio — grrreeerrrrrr.... — e o cabelo tremeu.  Então disse para si mesmo: Vou correr. E correu. Mas, quando corria, parece que sentia uma pessoa correndo atrás dele; ele ia olhar, mas teve medo. Então olhou para o meio do cemitério e enxergou algo como uma pessoa. Não podia garantir que era gente humana, mas tinha certeza de que, por medo ou outro motivo, enxergou. Assim que olhou, a “pessoa” ou seja lá o que fosse já estava ao lado duma sepultura e levantou-se. Quando Lázaro fitou o olho da coisa ou o coiso, este abaixou-se e não o viu mais. O seu medo era tanto, que o calcanhar parecia encostar na cabeça. Sem fôlego, quase morto, umas 8 da noite, chegou à casa do velho Figueira e contou o acontecido. Contudo, apesar do pavor que o Carmelo e o cemitério causavam-lhe, Lázaro não se emendava: vivia fugindo para ficar perto do irmão Chumbinho.

 

Certa época, porém, ficaram duas semanas sem se verem, duas semanas que viraram uma eternidade, pois um dia chegou lá em casa o primo Ferreira, meio sem jeito, como que escondendo algo. Quando Lázaro perguntou por que tinha vindo, disse:

 

— Vim te dar uma notícia.

 

Desconfiado, Lázaro perguntou o que o primo tinha vindo lhe dizer, e então ele disse:

 

— O teu irmão Chumbinho morreu!

 

Puta merda! Que notícia! O seu irmãozinho tinha morrido! Essa foi a época que mais lhe marcou. Estava agora só, não sabia da mãe, se era viva ou morta, e ainda perdia o seu irmãozinho, o seu amigo, o único com quem tinha prazer de brincar, nunca mais ia vê-lo! E lá estava ele nas mãos do Carmelo; nunca se sentiu tão só.

 

Vô Figueira e tia Ninita com seus dois filhos — Ferreira e Felisberto — eram as únicas pessoas que Lázaro podia procurar lá no Porto Novo, mas, mesmo estes, não pareciam interessados na sua sorte.

 

Na verdade, não era só desinteresse. Tempos depois, Lázaro soube que vô Figueira, depois que a peste de 1935 matou seu pai Pachico, apoderou-se do gado e da fazenda e de todas as outras coisas que o pai deixara para sua mãe Guida, e esta, sem ter com que sustentar os quatro filhos pequenos, viu-se obrigada a entregá-los nas mãos dos “padrinhos” (que os protegeram e também os esfolaram com zeloso carinho) e partir para Óbidos, a cidade mais próxima, onde se tornou doméstica em casa de uma gente grã-fina. Mas a cobiça do velho a este em nada aproveitou — pouco tempo depois, perdeu tudo o que possuía e caiu na mais completa miséria, tornando-se até mais desvalido do que a mãe de Lázaro.

 

Foi nessa situação que vô Figueira mudou-se do Lago Grande para o Porto Novo. Não bastasse ter que sustentar a Ninita e seus dois filhos, gulosos que nem dragas, havia ainda o Chumbinho, embora este lhe desse pouco gasto, pois, nessa época, o coitado já comia mais terra do que outra coisa, mas não deixava de ser uma boca a mais para alimentar.

 

Lázaro chegou a pensar em fugir do Carmelo, mas ficou num dilema: e se a mãe chegasse e não o encontrasse ali? Acabou ficando, mas, quantas vezes, de tardinha, ao lembrar-se da mãe, sentava na soleira da porta e, só ele ali, olhando no rumo da estrada, chorava. Então a vizinha, atraída pelo choro do menino, vinha de lá e consolava-o; levava-o às vezes para a sua casa e dava-lhe comida, sendo por isso odiada pelo Carmelo. Essa mulher vivia ali com o marido já velho e cego, e três filhos — Silézio, Lico e Raquel. Lázaro jamais se esqueceria da vizinha, mulher corajosa, que enfrentava o Carmelo por sua causa.

 

Um dia, depois de mais uma fuga, o Carmelo foi buscá-lo no portão da vizinha, e esta, que conhecia bem os “cegos”, pois tinha um em casa, perguntou ao Carmelo, olhando firme em seus olhos:

 

— O senhor consegue enxergar o que está fazendo com esse menino?

 

O Carmelo não era homem de levar desaforo para casa, mas, desta vez, ouviu e desviou a vista.

 

Lázaro então pensou: “Pronto! Agora é que vou apanhar mais”. Mas o Carmelo não lhe surrou naquele dia; deitou na rede e dormiu que nem um porco cansado de fuçar.

 

 

NOTA:

 

 

1) “Hevea brasiliensis” que os norte-americanos, durante a II Guerra Mundial (1939-1945), cultivaram em Belterra — pois o seringal da Inglaterra na Malásia caíra em poder do Japão, e os aliados ficaram sem borracha para a fabricação dos pneus dos seus carros, por isso os norte-americanos vieram plantar seringueiras no rio Tapajós, embora corresse à boca pequena que os gringos queriam mesmo era furtar o ouro depositado no subsolo brasileiro.

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

Capítulo IV ESTRANHO MUNDO

Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA

Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO

Capítulo VII MORTE EM FLOR

Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA

 

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.




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