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A COBRA DO LAGO 2w4s48

Nicodemos Sena - 09/04/2025

Créditos: Gavura de Manuel Frota Paryat

 

 

 

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Frota Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

CAPÍTULO XIII

 

A COBRA DO LAGO

 

 

 

“Não há grades que me prendam,

nem muros que me retenham.

Arrombei grades, saltei muros

e eis-me aqui de novo.”

Martins Pena

(O noviço)

 

 

 

Atrás do Paraná de Alenquer, do lado de lá, já na terra-firme, havia um lugar chamado Curicaca (1), onde todo sábado tinha festa. Para chegar lá, o pessoal atravessava a restinga (2) do paraná e varava num lago grande, uma bacia, cheia de jacarés.

 

O Batista namorava uma das cinco filhas de um vizinho. Lázaro também se encostou por lá na outra filha do homem, moleca bonitinha, carinha de anjo, mas sonsa pra chuchu.

 

Certo sábado, o Batista lhe disse:

 

— Lázaro, hoje tem festa no Curicaca, vamos lá?

 

O nosso herói não era contra festas, até gostava de ir, mas tinha certo temor, pois não havia uma festa que não terminasse em porrada, de maneira que disse “vambora” sem muita convicção.

 

— Vambora, vambora, não te preocupa, porra! Tu vais comigo e ninguém te fará mal! — garantiu o Batista, valentão como sempre. — Olha, se tu fores, leva a tua moleca, porque vou levando a minha; vai ela e todas as irmãs — arrematou Batista, referindo-se às filhas do tal vizinho.

 

— Vou pedir pro velho; se ele deixar... — disse Lázaro.

 

— Não precisa pedir, a gente vai, tô levando! — garantiu Batista.

 

Combinaram de se encontrarem sábado à tarde na casa do Batista. E assim foi. Sábado, lá pelas 4, Lázaro e o Antonico foram à casa do Batista. Este e sua turma já estavam arrumados — cachaça que só diabo! — na canoa, canoa grande, de vela. Batista disse:

 

— Lázaro, as mulheres já foram na frente com o irmão delas; nós vamos atrás.

 

Pegaram a canoa, espicharam a vela, e o pau surrou. O Curicaca não era tão longe; o pessoal enxergava bem o outro lado. Chegaram lá umas 6 da tarde. Festa no interior começa cedo. Esta já havia começado e ia animada.

 

O que era “a festa”? Umas vinte mulheres, quando muito, e aquele bando de machos, muitos machos, que chegavam e logo se metiam na cachaça, ficavam porres, caíam n’água, se atolavam no barro, levantavam-se e caíam de novo, uma lama danada.

 

O Batista era alto, forte e bonitão; gostava de andar bem-vestido e tinha um papo capaz de agradar a qualquer pessoa, mas possuía um defeito, aliás, dois: era falastrão e gostava de cachaça. Chegou lá e logo encheu a cara. Lázaro disse pra ele:

 

— Batista, pelo amor de Deus, não vai brigar.

 

Foi o mesmo que pedir o contrário, pois já saiu para a festa com a intenção de brigar. Para o Batista, festa sem porrada não era festa, não tinha graça.

 

— Se quiserem brigar, “nós” vamos brigar! — respondeu Batista, já se incluindo no fuzuê.

 

“Nós que nada; não gosto de confusão”, pensou Lázaro, mas o circo já estava armado e o pau logo surrou.

 

O Batista dançava e gritava, mandava tocar, era o mestre-sala, senhor da situação, tomou conta da festa. E Lázaro lá, no arrasta-pé com a sua moleca, vendo a hora da coisa estourar. Lá pela meia-noite veio um caboclo puxar a dita dona com quem ele dançava, a sua namorada — bem, pelo menos ele achava que era. O cara estava porre e todo molhado. Primeiro a garota fez que não viu e continuou com Lázaro. O cara insistiu. Ela disse que não ia. Pra quê! Uma mulher fazer desfeita a um homem numa festa no interior da Amazônia era (e ainda é) coisa feia e humilhante, que quase sempre acaba em morte. O caboclo partiu para cima dela a fim de dar-lhe um tapa. Lázaro só teve tempo de afastar a moleca com um empurrão e meteu um tapa no pé do ouvido do valentão, que afundou com o focinho no chão do salão. Ele e os parentes dele eram de lá mesmo do Curicaca. Virou um fuzuê dos diabos, um pé de porrada.

 

O Batista, que só queria um motivo para brigar, quando viu aquilo veio de lá que nem bicho. Puxou a pistola de dois canos, que trazia debaixo da camisa, e deu dois tiros para o alto, gritando:

 

— Apareçam, seus filhos da puta!

 

Dispersão geral. Só se via mulher gritar e homem correr e pular — “tiepeim” pra cá, “tiepeim” pra lá, “tiepeim” pracolá — dentro d’água.

 

O Batista e a sua turma, todos porres; sóbrio só Lázaro, que nunca bebeu para ficar porre.

 

Quando tudo serenou, o Batista voltou ao barracão de dança e gritou para os músicos, os únicos que não fugiram:

 

— Pessoal, toca essa porra aí por minha conta! Vamos dançar.

 

E o som rolou. O que era a “música”? Um violão e um tamborzinho, e nada mais. E a festa recomeçou. Aos poucos, o salão foi de novo se enchendo, mas só homem se atrevia a voltar, só macho, chega fedia; demorou para as mulheres reaparecerem.

 

A dança reiniciou em clima tenso, o tempo fechado, e sentia-se que a qualquer momento ia cair tempestade. Os parentes do ofendido não iam deixar a coisa ar em branco. Ah, não iam não! Iam se armar e a qualquer momento voltariam para se vingar.

 

— Rapaz, sabe o que é melhor? Vambora! — Lázaro disse ao Batista. A namorada dele, por sua vez, disse a mesma coisa, chorando.

 

— Então vamos — concordou Batista.

 

Enquanto a turma do Batista embarcava numa canoa, o irmão das meninas suspendeu as velas da outra canoa e se mandou com elas.

 

O vento estava fraco quando suspenderam a vela e começaram a travessia do lago. O Batista e o resto da turma, que haviam enchido o rabo de cachaça, jogaram-se no porão da canoa e dormiram que nem porco gordo, sobrando para Lázaro, que não havia bebido, pegar no leme e ir levando a canoa.

 

O lago era grande, cheio de capinzal e nele vivia muito jacaré, muito mesmo. Na noite escura que nem breu, não enxergando quase nada, Lázaro pegou a lanterna do Batista, grande e cabeçuda, de seis elementos, e focava de vez em quando o capinzal da margem. O foco batia no olho de tantos jacarés que pareciam as lâmpadas de uma cidade.

 

Dizem que naquele lago havia uma cobra-grande. Lenda ou não, o pessoal acreditava. A cobra morava ali e a cobra-grande é isso: quando boia, o olho parece farol de carro. E, no que Lázaro focava a lanterna, o pessoal que ia na canoa da frente pensou que fosse a cobra-grande que vinha atrás deles. Que desespero!

 

Do outro lado do lago, na restinga do paraná, a única agem era por cima da canarana, um capim ruim que só diabo, felpudo que nem folha de cana, que deixava o corpo do pessoal cheio de pico. Os que iam na frente, fugindo da cobra-grande, tinham que acertar o caminho.

 

O vento havia cessado completamente. Lázaro pôs-se a empurrar a canoa com o remo, a turma ainda dormindo no porão da embarcação. De vez em quando focava a lanterna, também procurando o dito caminho. E os da frente, pensando que o foco fosse o olho da cobra-grande, remavam, remavam: — vapt, vapt... Quem dormia acordou, e os porres logo ficaram bons. Remavam com tanta precipitação que acabaram errando o maldito caminho; meteram a canoa em qualquer lugar, até ela se engatar. No desespero, vendo a “cobra-grande” cada vez mais perto, pularam n’água, no meio do capinzal.

 

Canarana é capim danado, cresce grosso em cima d’água; se você andar ligeiro sobre ele, não afunda, mas se parar um bocadinho — tiummmmm — afunda que nem prego. E bateram os braços e se arranharam todos até alcançarem a terra. Milagre ninguém ter se afogado ou virado pasto de jacaré.

 

De nada sabendo, Lázaro veio remando com toda calma, parou no porto e acordou a turma com um grito, pois resolveu dormir o resto da noite na casa do Batista.

 

Do jeito que chegaram, suados e enlameados, jogaram-se sobre os fardos de juta e dormiram num só ronco até de manhã. Acordaram às 8 e desceram para o rio, todos nus; tomaram banho e voltaram. Em seguida, sempre na galhofa, lembrando da festa, foram assar peixe e tomar café — peixe ali havia muito, cada tambaquizão.

 

— Hoje ninguém vai trabalhar, já é muito tarde! — falou o Batista, sem necessidade, pois quem não sabia que depois de uma festa ninguém faz nada?

 

Morgaram o resto da manhã. Lá pelo meio-dia, o Batista falou:

 

— Vamos à casa das garotas?

 

— Vamos — concordou Lázaro, de pronto, todo animado, pois só pensava na “sua” moleca.

 

Mas só ele e o Batista foram para lá, pois a porcaria do Antonico, que era panema (3) que só diabo com mulheres, voltou para a casa do Expedito.

 

A casa do vizinho não era longe; chegaram logo lá. Encontraram tudo num grande silêncio. Bateram palmas, mas ninguém atendeu. Entraram devagar e encontraram somente a velha e o velho na cozinha do barraco.

 

— Cadê o pessoal? — perguntaram.

 

— Ainda estão dormindo — responderam os velhos.

 

— Mas, a esta hora?! — retrucou o Batista.

 

— É, estão todos doentes — responderam os anciãos.

 

— Doentes? Do quê? E as meninas? — perguntou o Batista.

 

— As meninas? Estão na rede, todas feridas, arranhadas — disseram os velhos.

 

— Feridas do quê?

 

— Do quê? Nem lhe conto, vizinho! Ontem de noite, quando vinham da festa, foram atacados pela cobra-grande! — explicaram.

 

— Mas como? Não tinha cobra-grande! — Lázaro e Batista estranharam.

 

— Tinha sim! Eles viram o fogo da cobra-grande — insistiram os velhos.

 

— Não pode ser! Eu vinha atrás deles e não vi essa cobra! — garantiu Lázaro.

 

Nada tirava da cachola dos velhos que os filhos foram atacados pela cobra-grande. Só Lázaro sabia o que de fato havia acontecido. Eles, muito porres, erraram o caminho e, com medo dos focos da lanterna que ele atrás vinha fazendo, jogaram-se na canarana e ficaram todos feridos.

 

Os velhos deixaram que eles vissem as molecas.

 

Caramba! As pernas, as coxas, o punho dos braços, todo o corpo delas estava em carne viva. As feridas se inflamaram depois, e o nosso pequeno e gabola garanhão teve que esperar três semanas para mostrar à sua cabocla, sobre os fardos de juta da casa do Expedito, que a cobra-grande era ele.

 

 

*******

 

 

NOTAS:

 

1) Ave presente em grande parte do Brasil onde haja vegetação aberta e lagoas, campos em solos pantanosos ou periodicamente alagados, como na Ilha de Marajó (Pará) e Pantanal. Seu nome popular é onomatopaico, semelhante ao som do seu canto, composto de gritos fortes.

 

2) Faixa de mato composta de capins e outras vegetações, às margens de igarapé ou rio, a qual, por ocasião das grandes cheias de inverno, aflora, enquanto o terreno permanece submerso.

 

3) Palavra tupi, que quer dizer pessoa vítima de feitiço, infeliz na caça, na pesca e na vida; azarado.

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

Capítulo IV ESTRANHO MUNDO

Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA

Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO

Capítulo VII MORTE EM FLOR

Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA

Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO

Capítulo X LÁ, SEREMOS FELIZES

Capítulo XI  TEMPO DE GUERRA

Capítulo XII  ANTI-HERÓI

 

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.




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