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Romance 'Lá, seremos felizes', de autoria do escritor santareno Nicodemos Sena, é publicado em formato de folhetim, às quartas-feiras

Nicodemos Sena - 21/05/2025

Créditos: Gravura de Manuel Paryat

 

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Frota Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

CAPÍTULO XIX

 

SEM FUTURO

 

 

 

“Que o amor seja eterno enquanto dure.”

Vinicius de Moraes

(Soneto da fidelidade)

 

 

 

 

Lázaro voltou à casa do patrão, onde ou a tarde indo e vindo dentro do seu quarto, como um animal enjaulado. Nunca tinha se sentido assim. Aurélia não lhe saía da cabeça e sentia no corpo a presença do corpo da rapariga. Estava muito agitado, mas, como as criaturas fora de si, não percebia. Viu o patrão olhar para ele e rir; viu o Raimundo chegar e galhofar do seu estado, mas nada disso o afetava. Já nem os riscos da situação calculava. Contudo, se antes lembrava do Cunegunes e sorria desdenhosamente, agora, sabendo que à noite aquele homem ocuparia o seu lugar no leito de Aurélia, sentia raiva, e isso o desagradava. Sabia que somente aquele que conhece a si mesmo será sábio em seus amores e permitirá o exercício de suas forças. Aliás, em se tratando de amor, não é uma questão de força. Se a natureza deu belos traços ao amante — o que não era o seu caso, embora não fosse de se jogar fora —, que mostre tais dotes. Já aquele que, como Lázaro, tem uma conversação agradável, evite um morno silêncio.

 

Depois da janta, Lázaro foi se deitar. Fazia uma noite fresca, mas suava, por mais que se embalasse na rede. Não mais aguentando, lá pelas tantas, disse para si mesmo: “Porra, seja o que Deus quiser! Vou já lá com a Aurélia ver a cara desse Cunegunes”.

 

Frente à casa da Aurélia bateu na porta, pouco se importando se o rival estava lá ou não. “Se ele chegou doido por ela, eu estou mais doido ainda”, pensou.

 

Aurélia logo abriu a porta e lhe disse:

 

— Ele ainda não chegou, mas vai chegar.

 

— Então vamos dar uma volta — convidou Lázaro.

 

— Vamos — concordou a rapariga.

 

— E se ele chegar? — perguntou o garanhão apaixonado.

 

— Ele tem a chave, espera — explicou Aurélia.

 

Deram uma voltinha pela cidade e em seguida se atracaram debaixo do trapiche, sob o olhar complacente do vigia com quem Lázaro tinha feito amizade no dia em que chegou a Alenquer.

 

Lá pela meia-noite, voltaram. Na porta da casa, Aurélia disse:

 

— Fica aqui e eu entro; se não voltar é porque ele veio.

 

E entrou. Um minuto depois, reapareceu e disse:

 

— O Cunegunes já veio, mas não está em casa. Sei que veio porque quebrou várias coisas, inclusive o rádio; vai-te embora porque a qualquer momento ele chega e a gente vai brigar, mas não te preocupa porque ele quebra e quebra mas não é de me bater, só grita.

 

Tudo indicava que o Cunegunes era um corno manso. Mesmo assim, Lázaro foi embora. Quase não dorme o resto daquela noite. Sem Aurélia, a rede espinhava. De manhã, pensou: “O Cunegunes vai fazer as compras e hoje mesmo deve voltar para o interior; à noite vou lá com a Aurélia”.

 

Assim fez. Às 19 horas, depois de um dia perdido, bateu na porta da rapariga.

 

— Que tal? — perguntou, assim que ela apareceu.

 

— Ele já foi embora — respondeu Aurélia.

 

Enquanto se abraçavam, a rapariga contou o que tinha acontecido:

 

— Ele voltou uma fera; brigou muito comigo porque não me achou em casa; quebrou mais coisas e depois se acalmou.

 

Lázaro perguntou se o Cunegunes tinha batido nela.

 

— Não, não bateu, ele nunca bate, só quebra e grita — respondeu Aurélia.

 

Lázaro não perguntou — e nem ela lhe contou — o que aconteceu depois que o Cunegunes “se acalmou”, mas não foi difícil adivinhar. Lázaro andava tão enrabichado pela rapariga, que só a largaria se ela lhe desse um pontapé na bunda — mas tinha certeza de que não faria isso, pois sentia que Aurélia gamara na sua macaxeira (1) — ou se o Cunegunes o apagasse, não ele, melhor dizendo, mas os capangas que trabalhavam para ele, pois de corno manso só se podia temer uma covardia.

 

Não aconteceu uma coisa nem outra, nem deu tempo de acontecer, pois Lázaro dormiu com Aurélia aquela noite e mais outra, e nunca mais voltou a ver o diabo da rapariga. Isso porque aceitou o pedido do velho Joaquim Macedo para que voltasse para o mato e arrematasse o serviço do cumaru, cuja safra estava no fim. Além disso, a festa de Santo Antônio havia terminado e ele precisava trabalhar. Também não queria ser ingrato com o capataz, que apesar de rude tinha sido bom para ele.

 

— Você vai, arremata o serviço do cumaru, que está no fim da safra, recebe a produção e faz as contas do pessoal, e depois volta pra cidade — disse-lhe o velho Joaquim.

 

Com alguns homens, Lázaro foi embora. Em quinze dias, fez tudo o que tinha que ser feito e voltou para Alenquer. Quando chegou, o velho lhe disse:

 

— Bichinho, o compadre Araújo, nosso patrão, quer que você fique trabalhando de caixeiro na loja dele em Alenquer, pois você sabe ler e escrever, e ele gostou das contas que você fez.

 

Lázaro ficou alegre e ao mesmo tempo embaraçado, pois planejara ir a Santa Irene visitar a mãe, a quem há meses não via.

 

— Não precisa ser agora, bichinho; sei que quer ir visitar a sua mãe, pois vá; na volta começa a trabalhar na loja do seu Araújo. Tá certo, bichinho? — socorreu-lhe o capataz.

 

— Obrigado, seu Joaquim, muito obrigado — disse Lázaro.

 

— Mas você volta, bichinho? — inquiriu o capataz.

 

— Volto sim! — garantiu.

 

— Então vá e não se esqueça de voltar; estamos esperando.

 

No mesmo dia, Lázaro pegou um barco de linha (2) e foi embora. Era o fim das férias escolares; os rapazes e as moças, que moravam em Alenquer e estudavam em Santa Irene, voltavam às aulas. A embarcação ia cheia de alunos, todos ricos e bem-vestidos. Lázaro era pobre, mas, com a sua calça de linho e a camisa de mangas compridas já um tanto surradas, mas limpinhas, e o seu galante sapato branco, não se enxergava por baixo de ninguém. Apenas duas coisas, ali no barco, o incomodavam: o isolamento que ele começava a sentir no meio daquela turma, que ria e brincava, senhores da situação, e o seu atraso escolar. Precisou pegar no pesado desde tenra idade e não pôde estudar, e isso o deixava um pouco inseguro; mesmo assim, gostava de si e não baixava a cabeça quando alguém o encarava. Aos poucos, um ou outro viajante dirigiu-lhe a palavra e então se entrosou. Entre os alunos, havia uma garota que perguntou para onde ele ia.

 

— Vou para Santa Irene — respondeu.

 

— Ham... você mora em Santa Irene? — tornou a menina.

 

— Moro — confirmou Lázaro.

 

— Você vem de onde? — inquiriu a garota.

 

— Venho de Manaus — acabou mentindo.

 

Para os moradores das regiões mais distantes de Belém, Manaus era a cidade mais importante da Amazônia. Quem vinha de Manaus tinha prestígio.

 

— Você mora em Manaus? — perguntou a garota, ainda mais interessada.

 

— Morar não, trabalho — respondeu.

 

— Trabalha no quê? — ela quis saber.

 

— Trabalho na firma J. G. ARAÚJO — novamente mentiu, dando-se ares de importância, pois não era qualquer caboclo que trabalhava na J. G. ARAÚJO, a firma mais poderosa de Manaus.

 

— Você vai demorar em Santa Irene ou já volta para Manaus? — tornou a garota, encostando-se nele.

 

— Não posso demorar muito em Santa Irene, o trabalho me espera — respondeu, em tom galanteador, cheio de cartaz, o nosso Pinóquio. E papo vai, papo vem, acabou pegando na mão da fina donzela, que disse ser filha de um grande fazendeiro e estudava no Colégio Santa Clara, tradicional colégio mantido e dirigido pela Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, fundada em 05 de dezembro de 1910 por alemães, com a colaboração das Irmãs Contemplativas Brasileiras. E assim aram a noite.

 

Lázaro já sabia que o caso com a garota, pela distância social que os separava, verdadeiro fosso, não teria futuro, ainda mais porque ele havia mentido. Mesmo assim, quando o barco chegou a Santa Irene, marcaram um encontro, que, claro, jamais aconteceria.

 

 

*******

 

 

NOTAS:

 

 

1) Macaxeira: do tupi, “maka’xera” (mandioca). Órgão sexual, em sentido figurado.

 

2) Barco de linha: embarcação de todos os portes que, na Amazônia, cumpre as mesmas funções dos ônibus nas cidades, conduzindo a população de um lugar para outro, através dos rios e igarapés, nos mais recônditos rincões da vasta região, que abrange mais da metade do território brasileiro.

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?


Capítulo II DENTRO DE UM BREJO


Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO


Capítulo IV ESTRANHO MUNDO


Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA


Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO


Capítulo VII MORTE EM FLOR


Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA


Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO


Capítulo X LÁ, SEREMOS FELIZES


Capítulo XI  TEMPO DE GUERRA


Capítulo XII  ANTI-HERÓI


Capítulo XIII  A COBRA DO LAGO


Capítulo XIV  UM POBRE INFELIZ


Capítulo XV  MESTRE CUCA


Capítulo XVI SOMBRA E SOLIDÃO


Capítulo XVII MISÉRIAS SECRETAS

 

Capítulo XVIII AURÉLIA

 

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.

 

 

 




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