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SOMBRA E SOLIDÃO 3g3y5o
Romance 'Lá, seremos felizes', de autoria do escritor santareno Nicodemos Sena, é publicado em formato de folhetim, às quartas-feiras
Créditos: Gravura de Manuel Paryat
LÁ, SEREMOS FELIZES
Romance de Nicodemos Sena,
com gravuras de Manuel Frota Paryat.
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Para o “menino” Bernardino Sena,
com gratidão, sempre.
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“Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.”
Dante Alighieri
(Inferno, Canto I)
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CAPÍTULO XVI
SOMBRA E SOLIDÃO
“O futuro é um enigma que está em frente ao homem como a névoa do outono que se levanta dos pântanos, e na qual voam, inconscientes,
as aves sem se verem umas às outras.”
Nikolai Gogol
(Taras Bulba)
Todo dia chegava gente para trabalhar no roçado, chegava e saía, até que, depois de nove meses, como num parto, o roçado acabou. Acabou, mas a famigerada plantação de cocos não chegou a ser feita, abortou, isto porque, nessa época, o governador do Estado do Pará, o caudilho Magalhães Barata (1), ou a perseguir o seu Oscar Araújo, dono do roçado e prefeito de Alenquer, por ser este da oposição. Os correligionários do governador em Alenquer espalharam o boato de que o prefeito derrubava as castanheiras no seu roçado, infringindo uma lei que protegia a árvore da castanheira.
O boato era falso. O patrão não iniciava a queimada de um roçado sem antes mandar encoivarar (2) uma grande área em redor das castanheiras, poupando-as do fogo. Chegando a mentira até Belém, o interventor federal enviou uma comissão de puxa-sacos a Alenquer com a finalidade de examinarem a situação. Um mês depois, ordenou que parassem com o serviço, mas já haviam derrubado e queimado toda a área do roçado, um monstro roçado, que o pessoal olhava e não enxergava o fim.
Era outubro, bruto verão, cheiro de mato queimado se levantava do chão. Os homens só esperavam que a chuva caísse para encoivararem e plantarem. Plena safra do cumaru (3). Na região de Alenquer havia muito cumaruzal, muito mesmo.
Paralisado o roçado do prefeito Oscar Araújo, o capataz Joaquim Macedo liberou os trabalhadores. Quem quisesse ir para suas casas, fosse. Enviou para Alenquer a ordem de pagamento do saldo, que quase todos tinham, mas quem quisesse ficar coletando cumaru, ficasse, que ele compraria a produção.
Muitos se foram, outros ficaram no mato juntando cumaru. Juntavam toneladas por semana. Quebravam o caroço e tiravam a pevide (4), que era levada de barco para Belém. O Miguel desceu à cidade dizendo que voltava. Lázaro ficou.
De manhã, o pessoal ia atrás do cumaru e voltava à tarde, com os paneiros (5) cheios. Lázaro pesava e anotava a produção de cada um. O capataz fora visitar a sua família em Alenquer.
Mas o cumaru já andava escasso ali por perto do tapiri, os homens tinham que procurar muito longe o cumaruzal, por isso o velho Joaquim Macedo, antes de partir para Alenquer, disse:
— Vamos fazer um tapiri mais adiante e lá ficaremos durante a semana; só sábado e domingo ficaremos aqui; o problema é que o tapiri não pode ficar só, alguém tem que ficar vigiando. Você fica vigiando o tapiri, bichinho?
Ficar sozinho naquela brenha, longe de tudo, num tapiri sem parede?! O nosso herói gelou, pois onça havia bastante, de vez em quando matavam uma. O patrão tinha três cachorros grandes para vigiar onça. De noite, elas esturravam bem perto — uuuuuuuuuu... — e os cachorros latiam; então alguém atirava — peiiiiii... — e as feras iam embora.
— Bichinho, você tem coragem de ficar só, aqui no tapiri? — tornou o capataz.
Não tendo outra coisa a dizer, Lázaro proclamou o seu “Fico”, mas com muito medo.
Na manhã de segunda-feira, o capataz baixou para a cidade e a turma foi embora. Lázaro ficou no tapiri, solitário, sem ninguém, sabendo que ia dormir só naquele ermo.
Havia um jirau onde guardavam a munição e as armas — rifles e espingardas. Ao sair para o mato, cada um levava a sua arma. Naquele dia, sobraram lá três bons rifles, os quais, porém, não diminuíram a sua solidão. Lázaro se lembrava de casa e da mãe, e sentia vontade de chorar, pois a verdade é que ele tinha crescido e queria que o vissem como homem, mas continuava menino.
“Por que não fui para o mato com o pessoal? Por que fiquei só aqui?”, lamentava-se o rapaz, quase uma criança, mas o seu senso de responsabilidade dizia que era certo ficar ali e não devia se arrepender.
Lá pelas 5 da tarde, antes da noite cair, jantou e amarrou a sua rede sobre o jirau e ficou lá em cima. Depois, acendeu um farol de querosene que servia para espantar onça, pegou uma lanterna e um rifle de repetição, de doze tiros, e acomodou-se na rede, com os ouvidos bem atentos aos sons e ruídos que vinham da mata, que já ia escurecendo, os pensamentos indo e vindo. Lembrou da lenda do Curupira, uma criatura pretinha, parecida com uma pessoa, que anda pelo mato que nem gente, pisando forte e, quando pisa, a gente sente — Tum, Tum, Tum. E assovia fino e alto — fiiiiiiiii. E anda muito rápido. Assovia aqui, e um instante depois já assovia muito longe. Nunca teve a sorte de vê-la, mas muitos caboclos diziam já ter visto a coisa. Sabia que isso ava no tapiri, sempre de noite; o pessoal reunido no tapiri ouvia o assobio.
— Lá vai o Curupira! — o pessoal dizia.
Dizem que o Curupira gosta muito de tabaco e cachaça; alguns caboclos colocavam charuto e garrafa de cachaça para a criatura debaixo de alguma sapopema (6), que ele vem bater — Taim... Taim.... — meia-noite. Lázaro pensou noutras criaturas que vivem na mata, como o Jurupari, o Juma e o Mapinguari. Não acreditava muito na existência deles, mas ficou todo arrepiado quando de repente viu que já era noite fechada. Lembrou das galinhas que o patrão trouxe da cidade e viviam num galinheirozinho que ele mesmo fizera para defendê-las das mucuras (7), que tinham especial predileção por galinhas; uma destas chegou botando ovos e agora chocava-os.
Escureceu. Sombra e solidão. O morador mais próximo vivia a trinta e cinco quilômetros. Só pássaros e outros animais noturnos — guaribas (8), mucuras, cigarras, sapos, morcegos, besouros — cantavam.
O mato é misterioso, desconhecidas criaturas vivem nele e estranhas coisas acontecem; se cai um pau, ouve-se longe o estrondo. Lázaro lá, deitado, o sono custou a vir, e, quando veio, nunca caiu nele por completo. Cochilava e acordava, cochilava e acordava. Lá pela meia-noite, ouviu os três cachorros rosnarem lá embaixo. Faziam assim quando pressentiam onça.
“É a bicha”, pensou.
ando mão do rifle e da lanterna de três elementos, Lázaro firmou-se bem na rede e ficou escutando. A coisa veio, veio, andava e parava, andava e parava, até que calou. Relaxou um pouco e foi colhido pelo sono. Acordou com a mesma zoada, como que de um bicho do mato se aproximando. Curiosamente, os cachorros tinham parado de rosnar e já não davam nenhum alarme, o que o deixou ainda mais intrigado, mas pressentia os os da criatura nas folhas secas. Andava e parava, andava e parava. O que seria? O pessoal que foi buscar cumaru acampara a sete horas de viagem de onde Lázaro estava, o que, na selva, é uma distância pequena. Se alguém de lá desse um tiro, era capaz de escutar, mas, agora, isso de nada lhe adiantava, pois estava só, completamente só, no meio da mata, e uma onça, provavelmente faminta, já sentindo o seu cheiro, se aproximava. Lázaro focava a lanterna e nada enxergava. Focava para o lado da cacimba, porque a onça, antes de atacar, costuma beber água. Mas nada via. Em dado momento, Lázaro escutou partir lá do galinheiro um grito — quiauuuuu. Era a galinha que gritava no galinheiro.
“Porra! A onça tá comendo a galinha!”, pensou nosso herói, borrando-se de medo. Então focou a lanterna e enxergou os olhos da coisa. Não sabia o que era, só via os olhos. “Puta merda! É mesmo a onça!”, pensou.
Então, tremendo-se todo, mirou no meio dos dois olhos da criatura e apertou o gatilho do rifle de repetição. Nervoso, apertou tão forte que saíram de uma só vez todas as doze balas; saíram tão rápidas que nem sabia que estava atirando.
Depois dos tiros, tudo voltou ao silêncio, nem os cachorros davam sinal de vida, e isso lhe pareceu bem estranho.
“A bicha deve estar morta, senão escutava a carreira dela e os cachorros latiam”, pensou.
ou o resto da noite acordado. Lá pelas 6 da manhã, já dia claro, com o rifle na mão, levantou da rede, desceu do jirau e foi devagar até o galinheiro, onde encontrou, em vez da imaginada onça, a mixuruca duma mucura, que tinha vindo comer as galinhas. Só uma das doze balas acertou no bichinho, o resto se encravou no chão.
Lá pelas 9 horas começou a boiar caboclo no tapiri, vindo de todos os lados. O pessoal ouviu aquele monte de tiro, um atrás do outro, no meio do mato, zoou muito longe.
“Puta merda! Alguém atacou o Lázaro”, pensaram, mas sabiam que não era isso, pois quem ia atacá-lo naquelas brenhas? “Só pode ser onça”, concluíram.
Chegaram gritando: — Eiiiiiiii... o que aconteceu?!
Depois que Lázaro contou o sucedido, foi aquela avacalhação. Um caboclo mais trocista pegou o chumacinho de pelo e sangue, no qual se convertera a mucura, e pôs-se a correr pelo acampamento rachando-se de rir, e o pessoal fingia estar com medo.
— Olha só a onça que o Lázaro matou! — gritava o caboclo.
Lázaro também ria, morrendo de vergonha.
O pessoal retornou naquele mesmo dia à coleta do cumaru, cuja safra estava no fim. O comboio de burros já não vinha de quinze em quinze dias. Além disso, em vez dos doze burros, vinham apenas cinco e já traziam pouca mercadoria; na volta, iam carregados de cumaru. Dois meses depois, o Joaquim Macedo voltou da cidade e deu por encerrado o serviço do cumaru.
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NOTAS:
1) Magalhães Barata: Interventor Federal no Pará na década de 30 do século XX. Vitorioso com o movimento revolucionário “tenentista”, após a renúncia de Washington Luís e a ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da República, foram-lhe outorgados poderes quase absolutos, dado que se vivia em regime de exceção.
2) Encoivarar: juntar o resto do mato mal queimado em “coivaras” (palavra tupi), nos preparativos dum roçado, para queimá-lo de novo, antes do plantio.
3) Cumaru: fruto da selva amazônica, que produz uma semente da qual se extrai utilíssimo óleo.
4) Pevide: semente de vários frutos carnosos.
5) Paneiros: cestos de tala de palmeira e trançado largo, geralmente forrados de folhas.
6) Sapopema: árvore que desenvolve raízes de até dois metros de altura ao redor de seu tronco.
7) Mucura: do tupi: “mu’kura”. Também conhecida por “gambá” (Do tupi: “gã’bá” – seio oco). Mamífero marsupial, placentário, as fêmeas com bolsa marsupial, dentro da qual se acham as tetas, às quais se agarram 10 a 12 filhotes recém-nascidos com pouco mais de 1 cm de comprimento.
8) Guariba: do tupi: “wa’riwa”. Macaco caracterizado sobretudo pelo grito peculiar, espécie de uivo ou ronco monótono e melancólico, produzido em coro por todo o bando, sob a regência do macho mais velho, o “capelão”.
LEIA MAIS:
Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?
Capítulo II DENTRO DE UM BREJO
Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO
Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA
Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO
Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA
Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO
Capítulo X LÁ, SEREMOS FELIZES
OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI
* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.