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Capítulo XI: 6p1533

TEMPO DE GUERRA 2jv2g

Romance 'Lá, seremos felizes', de autoria do escritor santareno Nicodemos Sena, é publicado em formato de folhetim, às quartas-feiras

Nicodemos Sena - 26/03/2025

Créditos: Gravura de Manuel Paryat

 

 

 

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Frota Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

CAPÍTULO XI

TEMPO DE GUERRA

 

 

 

“Estava feliz ou ligeiramente conformado em prosseguir.

Avante, alguém gritava em suas entranhas.”

Assis Brasil

(Os que bebem como os cães)

 

 

 

 

Pensando na mãe que há dois anos o deixara sozinho nas mãos do Carmelo, Lázaro ia, todos os sábados, às 2 da tarde, para a frente da casa olhar a estrada, que se perdia entre as seringueiras, na esperança de que o caminhão do Manuel Rufino, o mesmo que um dia o trouxe do Porto Novo para Belterra, trouxesse também sua mãe, pois não há mal que dure para sempre e nem bem que nunca se acabe. Certo sábado, o milagre aconteceu. De longe reconheceu o caminhão — grande e sujo de poeira. Seu coração disparou quando o caminhão apitou: piiiiiiiii... Lázaro enxergou a mãe na carroceria do caminhão, mas, como este sempre ava e a mãe não descia, pensou que ainda desta vez fosse ilusão. Mas não era. Era mesmo a mãe que ele via ao lado de outras pessoas na carroceria do caminhão, mas só teve certeza de que não estava sonhando quando o caminhão parou e sentiu que dois braços o abraçavam, quase o sufocando, e um rosto de mulher, do qual ainda lembra todos os dias, encarava-o com os olhos cheios de lágrimas. Sentindo as lágrimas que saltaram do rosto da mulher pingarem em sua testa, teve certeza de que era mesmo a mãe e não sonho.

 

 

 

 

 

 

“Sim, é mamãe que voltou!”, Lázaro gritou lá dentro de si, com todas as forças da sua alma, sentindo voltar-lhe a esperança. A mãe estava de novo com ele, bonita, forte e sadia; nada nem ninguém já podiam lhe fazer mal.

 

Na vida acontecem tantas coisas, umas boas e outras ruins, que certas coisas nem é bom uma pessoa lembrar. O menino cresceu, sumiu-se no mundo e por muito tempo ninguém falou sobre o que lhe aconteceu. A mãe, porém, jamais o esqueceu. Contava a história do menino aos pedaços, como não querendo fazer-se entender, de modo que a história do pequeno Lázaro, que também é a minha história, precisa ser remontada. É isso que tento fazer. É por isso que, por uma necessidade só minha, escrevo e reescrevo livros que só a mim importam e talvez ninguém se interesse em ler. Pouco importa, mesmo, que não leiam; é o meu segredo, a minha história.

 

Até então, Lázaro não sabia o que era estudar. Na vida dura que foi obrigada a levar, sempre na cama ou na cozinha, a mãe não teve oportunidade de estudar, mal sabia ler e escrever, e o pouco que sabia aprendeu sozinha. Mas dava muita importância ao saber. Quando chegou do Lago Grande, colocou Lázaro na escola que havia em Belterra — bonita, todinha de madeira, feita pelos norte-americanos. Ia dia sim dia não, pois tinha que trabalhar. Aprendeu, assim, alguma coisa. Verdade que quase nada, porque pouco tempo depois foram transferidos para outro local.

 

Era 1940, a II Guerra Mundial havia arrebentado, a vida tinha ficado difícil, quase impossível, faltava tudo, principalmente o açúcar. Conseguiam-se às vezes 100 gramas num comércio, 100 gramas noutro. A mãe mandava-o comprar açúcar, e ele ava o dia nas estradas. As vendas eram longe, e ele tinha que ir ao comércio lá de cima e depois descer ao porto, na beira do rio Tapajós. Em tal comércio estão vendendo açúcar, alguém dizia. Corria para lá.

 

Na Vila Bode, um dos bairros de Belterra, ficava o Arnaldo Freitas, comerciante português. “Estão vendendo açúcar na loja do Freitas!”, melhor notícia não havia. Lázaro pegava a sua roda de bicicleta e saía batendo nela com um pauzinho, como se ela fosse o carro e ele o motorista; três horas de viagem, o tempo todo correndo e nem via o tempo ar; quando dava por si já havia chegado à loja do Freitas, onde tinha ainda que enfrentar uma monstra fila; tudo isso para, depois de várias horas, conseguir uma bolota de açúcar — 100, quando muito 200 gramas, a cota que vendiam para cada pessoa.

 

Assim era a vida do menino naqueles dias. Mal chegava à loja do Freitas, tinha de novo que se mandar, pois surgia notícia de que em tal lugar estavam vendendo açúcar. Com sua rodinha, não temia distâncias, sempre descalço, não sabia o que era sapato.

 

Nessa época, chegaram os seus dois irmãos, Orlando e Junito. Orlando veio do Lago Grande com a mãe, pois morava lá com a vó Gitoca e o velho Teodoro. Quanto ao Junito, a mãe mandou Lázaro buscá-lo no Lago Grande, onde morava com um comerciante de madeira chamado Zezé, que tinha uma mulher alta e muito bonita. Zezé comerciava, mas era o Junito quem se lascava, pois era ele, e não o Zezé, quem carreava a madeira do centro da mata até a beira do Lago. Vida desgraçada essa de trazer a madeira que os homens cortavam lá no centro, rolos enormes, numa carroça puxada por seis bois, por uma estrada apertada, até o porto.

 

Quando Lázaro chegou à casa do Zezé o Junito não estava. Zezé disse que o Junito tinha ido buscar madeira e só voltaria depois de três dias. Zezé também disse que Lázaro podia ir lá onde estava o Junito; uma carroça ia para lá naquele dia. Lázaro aceitou a oferta, pegou a sua trouxa de roupa e se acomodou na carroça. Viajaram o dia todo e à noite chegaram onde o Junito estava.

 

Alguém anunciou:

 

— Junito, chegou teu irmão!

 

O Junito veio e ele e Lázaro se abraçaram, da parte de Lázaro com muita emoção, pois era a primeira vez que ele se encontrava com esse irmão. Já o Junito deu um abraço frouxo em Lázaro, do jeito que ele sabia, pois sempre foi um cara frio, na verdade, seco. No outro dia, voltaram para o porto. Para sempre ficou gravada na mente de Lázaro a zoada das rodas da junta de bois, duas rodas grandes, de madeira, com uma fita de ferro: Viiii-Viiiiiii-Viiiiii...

 

Do centro da mata até a casa do Zezé era um dia inteiro de viagem! No dia seguinte, Lázaro e Junito pegaram um barco para Santa Irene e de lá foram para Belterra.

 

Foi assim que Lázaro se encontrou com Orlando e Junito, que tinham mais de quinze anos e se alistaram na Companhia. Lázaro só tinha treze anos e, para trabalhar na Companhia, teve que se registrar como se tivesse quinze, sendo agora três para trabalhar: Orlando, Junito e Lázaro. Com o Carmelo, eram quatro.

 

No fim do mês, dia do pagamento, pegavam o salário e entregavam para a mãe, não ficava nada com eles, nem mesmo para comprar um sapato, andavam descalços. Mas nem a mãe se beneficiava do salário, que ia parar nas mãos do Carmelo — melhor dizendo, dos taberneiros de Belterra ou do Porto Novo, onde, depois do trabalho, Carmelo bebia todo o dinheiro.

 

Certo sábado, como sempre fazia, o Carmelo foi ao Porto Novo e de lá voltou às 3 da tarde, bêbado, ou pelo menos assim parecia. Desceu do carro cambaleando — também pudera, bastava uma gota de álcool para deixar o danado com as pernas bambas. Entrou em casa desarrumando e gritando, com a voz pastosa:

 

— Guida, sua puta, onde estás? Aparece!

 

Sabendo onde a mãe, nessas ocasiões, se escondia, o Carmelo foi até ela e meteu-lhe um pontapé na bunda e, com um relho de umbigo de boi que guardava especialmente para essas ocasiões, aplicou vigorosas lapadas na infeliz, vindo, em seguida, como um touro enfurecido, na direção dos meninos, pois se acostumara a bater nos menores depois de surrar a mãe. Não eram só lambadas que aplicava nos coitados; eram tapas, pauladas, ripadas, rasteiras, arpoadas e outros afagos. Nesse dia, porém, em vez de se esconderem, resolveram enfrentá-lo. E o Carmelo, vendo os porretes que traziam nas mãos, reteve o relho e quedou-se olhando para a cara dos fedelhos, como que pasmado. Foi quando o primo Ferreira, moleque forte e destemido, deu um o à frente e falou como gente grande:

 

— Escuta, Carmelo, se bateres de novo na titia Guida, a gente te mete o porrete!

 

Lázaro então pensou: “É agora que o Carmelo vai virar bicho”. Mas, nada disso. Quando viu cada um dos moleques com um porrete, prontos para avançarem contra ele, o valentão esfriou. Esfriou mesmo. Foi para dentro da casa e deitou-se em sua rede, e dormiu. E a turma ficou por ali, pensando que quando o Carmelo acordasse é que ficaria mais perigoso, pois se levantaria sóbrio, no juízo dele, e ia querer se vingar.

 

Lá pelas 6 da tarde, o homem se acordou, levantou-se da rede, mas, em vez de avançar contra eles, chamou:

 

— Guida!

 

A mulher perguntou o que ele queria, e o Carmelo disse:

 

— Vem cá.

 

Os meninos então pensaram: “Porra! Agora vai bater nela”.

 

E nada da mãe vir, continuava lá no seu canto, com medo.

 

— Tem janta? — o homem perguntou.

 

Criando coragem, ou por estar com muito medo de apanhar, a mãe apareceu e arrumou a mesa, e o Carmelo sentou-se para comer.

 

— Vem comer comigo! — mandou ele.

 

— Não, eu já comi — respondeu a mulher, ressabiada. Ele insistiu para que viesse. Então o Orlando disse:

 

— Vá, mamãe, vá lá comer, a gente te vigia daqui.

 

Lázaro jamais esqueceria a cena: o homem comendo na cabeceira da mesa e a mulher à sua frente, cabisbaixa, sem comer; ele e ela, calados. Depois de um tempo, aconteceu o que ninguém esperava: o Carmelo pôs a mão sobre o braço da mulher e começou a bater assim de leve — pá, pá, pá — num gesto como que de carinho; pela primeira vez viam o homem tratar assim a mulher.

 

Em seguida, para aumentar o espanto, o homem começou a chorar. Foi também a primeira vez que viram o Carmelo fraquejar; a primeira e a última. Ele não reagiu nem quando o primo Ferreira, que era mesmo muito abusado e não levava desaforo para casa, vendo que o Carmelo chorava, atreveu-se a dizer-lhe:

 

— Escuta, Carmelo: de hoje em diante, o dia que tu bateres na titia tu vai ter que bater em todos nós!

 

Como um animal vencido, o homem, com todo aquele seu corpanzil, já lhes parecia pequeno, sem ânimo, quebrado. Por um instante, Lázaro teve coragem de fazer o que nunca fizera: encarar o Carmelo sem tremer e sem baixar a vista. Pela primeira vez enxergou o homem no seu verdadeiro tamanho: grande e bruto, mas, ao mesmo tempo, pequeno e frágil, muito frágil. Não deixou de temê-lo, mas, a partir daquele instante, quebrou-se o feitiço. Lázaro compreendeu o sentimento confuso que tomava conta dele toda vez que via o Carmelo chegar do Porto Novo tropeçando nas pernas e atoleimado, depois de ter sido depenado pelos amigos de copo e pelo taberneiro, os quais, como as moscas e os carrapatos que chupam o sangue do touro, sugavam-lhe as forças e o dinheiro. Vendo o Carmelo ao mesmo tempo grande e pequeno, forte e fraco, corajoso e covarde, Lázaro percebeu esse sentimento estapafúrdio, de pena e solidariedade, que brotava dentro dele, pelo homem que lhe surrara tantas vezes e ainda o surraria tantas outras vezes. Muitos anos mais tarde, o Carmelo morreria nos braços de Lázaro, aos 82 anos de idade, acometido por um câncer em estágio terminal, mas, antes que desse seu último suspiro, o brutamonte olhou-o nos olhos como uma criança fita os olhos do pai e sussurrou no seu ouvido: “Perdoa-me, Lázaro, por todo o mal que te fiz; fui covarde contigo, assim como o mundo foi covarde comigo, pois fui maltratado desde o ventre materno e acho que isso me fez odiar a todos e reagir contra tudo e todos, fosse homem ou mulher, adulto ou criança, animal ou gente humana; eu não cria que existisse ou tenha existido uma pessoa — uma sequer! — capaz de apanhar sem se defender. Fui violentado sem poder reagir, e por isso ei a odiar o desamparo da criança que um dia fui e deixou de existir; ei a vida a maldizer a hora em que nasci, a raça humana para mim não ava de uma monstruosa aberração; o Cristo, que amou até aqueles que o crucificaram, sempre foi para mim uma fraude, invenção de mentes fracas e desesperadas; não concebia que Cristo fosse modelo para qualquer homem; preferia crer na Terra sem Mal, da qual me falaram em criança, antes de ser expulso com minha mãe da aldeia onde nasci e ficar desgarrado por esse mundo, que nem alma penada; preferia crer que a alma do homem, quer este faça o bem ou o mal, jamais perece, e, se era assim, para que um Salvador? Agora sei que não é assim. Mas de que adianta saber disso agora, a descoberta chegou tarde, não tenho mais tempo para desfazer o erro”. E, depois de uma pausa, o infeliz prosseguiu, num cicio quase inaudível: “Agora, oh ironia do destino, o algoz está nas mãos da vítima. Anda, Lázaro, liberta-me do sofrimento, faz comigo aquilo que só não fiz contigo porque todo malvado, na verdade, é um covarde que teme a sua própria sombra. Mata-me, antes que eu morra de uma morte natural, pois não a mereço”.

 

Foram essas as últimas palavras do Carmelo, de quem Lázaro cuidou até o seu último instante, com o mesmo desvelo que dedicaria ao pai que não chegou a conhecer.

 

A partir daquele dia, as coisas melhoraram para a mãe e os meninos. Não que o valentão tivesse medo dos pequenos; não tinha medo de ninguém e de nada — o seu chefe que o diga: caiu na besteira de se atrever com o Carmelo e acabou levando uma tremenda surra, e por isso, no mesmo dia, o homem, a mulher e os meninos foram expulsos da Companhia e tiveram que ir de mala e cuia (1) para Santa Irene.

 

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NOTA:

 

1) “De mala e cuia”: expressão cabocla que quer dizer mudar-se de um lugar para outro levando consigo os móveis e utensílios da casa.

 

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

Capítulo IV ESTRANHO MUNDO

Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA

Capítulo VI A BONDADE DE LEVINDO

Capítulo VII MORTE EM FLOR

Capítulo VIII NA SOLEIRA DA PORTA

Capítulo IX NAS MÃOS DO CARMELO

Capítulo X LÁ, SEREMOS FELIZES

 

OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no formato impresso no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP. É articulista do Portal OESTADONET.




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