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O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA 2h515g

Romance Lá, seremos felizes, de autoria do escritor santareno Nicodemos Sena é publicado em formato de folhetim, às quartas-feiras

Nicodemos Sena - 12/02/2025

Créditos: Manuel Paryat

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

Capítulo V

 

O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA

 

 

 

“O homem é um bulbo formado por cem folhas,

um tecido urdido com muitos fios.”

Hermann Hesse

(O lobo da estepe)

 

 

 

 

Dias depois, Lázaro deu por si do outro lado do Lago, na Vila do Curuai. Acompanhara o Venâncio e seu pessoal e nunca mais voltou à casa do Pajurá.

 

O Curuai nessa época não ava de duas ou três ruas de terra e algumas palhoças, mas os moradores achavam-se importantes porque todo o comércio do Lago era feito lá e até tinha um Cartório — e isso, claro, deixava o pessoal do Curuai todo pávulo (1), dizendo que a vila era a “capital do Lago”. Só se fosse capital da bosta de boi, pois era cercada por uma enormidade de água e terra — e gado, muito gado. Soltas no campo, as manadas entravam na vila quando bem queriam e misturavam-se pacificamente aos humanos. Cheiro de capim podre impregnava o ar e enxames de moscas levantavam-se das fezes e entravam nas casas, mas ninguém reclamava, muito menos o menino, que via até certa beleza nisso. Afinal, estar longe do Pajurá já era suficiente motivo de alegria.

 

Quando chegou ao Curuai, era época da festa de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do lugar; a vila estava em polvorosa. Barcos, botes e canoas chegavam de todos os lugares trazendo comerciantes, vaqueiros, madames, prostitutas, fiéis e infiéis, todos muito contritos; até um ateu, desde que se comportasse, podia participar da festa. Ali, diante da Santa, dissolviam-se as diferenças: branco ou preto, rico ou pobre, homem ou mulher, cristão ou macumbeiro, todos, sem acepção, divertiam-se igualmente, o sagrado e o profano se misturando, numa farra dos diabos, que se estendia por dias e noites e só terminava quando se esvaziassem todas as garrafas de cachaça e as mulheres arretadas e voluptuosas voltassem para casa — isto é, todas as mulheres, pois, naquelas beiras de rio da Amazônia, naquela época, jovens e velhas, feias e bonitas, livres e comprometidas entregavam-se ao jogo amoroso sem regatear na medida.

 

Sem se preocupar com o futuro, o menino Lázaro, durante os dias da festa, também se divertiu, mas não foi fácil, posto que a liberdade conquistada ao desgarrar-se do pessoal do Venâncio trouxe-lhe alguns percalços como, por exemplo, ter que sobreviver dos restos que lhe dava um ou outro dono de barraca ou do que um ou outro garanhão lhe pagava para levar algum recado à sua presa. O espertinho deu graças a Deus por ser a festa da Santa uma excelente ocasião para todo tipo de malandragem, e não se arrependeu de ter largado o pessoal do Venâncio, pois, pela primeira vez na vida, sentia-se livre para fazer o que bem quisesse.

 

Ao terminar a festa, figurinha já manjada na vila, viu-se zanzando de lá para cá e de cá para lá durante o dia e, à noite, dormia debaixo das árvores da “rua” — se é que se pode chamar de rua aos caminhos do Curuai, “pavimentados” de estrume. Depois de três dias, alguém tocou na sua costa e disse:

 

— Ei moleque! O que fazes aqui? Quem é teu pai?

 

— Não tenho pai — respondeu Lázaro.

 

— E a tua mãe? — continuou a pessoa.

 

— Mãe também não tenho.

 

— De onde vieste?

 

— Lá do Torrão.

 

E então contou que tinha vindo com o Venâncio e o pessoal dele para a festa de Nazaré.

 

— E cadê eles?

 

— Foram embora e largaram-me aqui — mentiu para o homem, pois até era verdade que Venâncio e a sua turma foram embora, mas foi ele, Lázaro, quem se livrara deles e não eles que o deixaram.

 

O homem que falava com ele era o “Dr. Cazuza”, como o chamavam. Não era doutor nem nada, mas, na falta de um delegado de verdade, exercia essa função “temporariamente” — mas isso já durava dez anos!

 

Dr. Cazuza era um legítimo espécime de caboclo amazônico: rosto gretado pelo sol, olhos negros e amendoados, voz mansa. Lázaro ficou bem impressionado, mas se pôs de guarda. Na merda de vida que até aí levara, aprendeu que até o sujeito mais malvado, no primeiro momento, mostra-se bom.

 

— Já comeste hoje? — perguntou o homem.

 

— Não — respondeu Lázaro, lembrando do ditado “peixe morre pela boca”.

 

— Então vamos pra casa? — disse o homem.

 

“Pronto! Estou fisgado!”, pensou o menino. E acabou indo para a casa do homem, que se situava na terceira rua do vilarejo — ou seja, na última —, onde uma cabocla ancha e bonita, cercada de filhos, recebeu-os.

 

— Cuida desse moleque — disse o homem à mulher, que examinou o pirralho rapidamente com os olhos e em seguida sorriu.

 

Lázaro ficou lá muitos dias, enchendo água para eles, pois água, lá, só a do rio. Buscava água em duas latas penduradas num cambão (2) que ele sustentava em seu ombro. Aceitou esse trabalho estafante não por ser um exemplo de trabalhador, tinha lá as suas preguiças, pois isso de carregar peso debaixo do sol a pino não é coisa que uma criatura em sã consciência deseje ardentemente para si, mas ele precisava comer e sabia que, ali no Curuai, se se metesse a esperto, acabaria morrendo de fome ou no xadrez e, ainda por cima, o próprio homem que se dispôs a protege-lo é que o conduziria ao xilindró (3). Em troca de ser um bom menino, davam-lhe comida, nada mais do que isso.

 

Certo dia, o homem o chamou:

 

— Venha cá, menino!

 

Lázaro aproximou-se e o homem tornou a perguntar de onde tinha vindo.

 

— Da casa do Pajurá — repetiu Lázaro, na esperança de que o homem, que devia conhecer a fama de avaro do Pajurá, se compadecesse dele.

 

— Tens pai, tens mãe? — insistiu o homem.

 

— Pai não tenho, já morreu; mãe não conheço nem sei o paradeiro — respondeu.

 

— Como era o nome do teu pai? — o homem quis saber.

 

— Alguém disse que era Francisco — respondeu o menino.

 

— Oh! Pachico! Pachico!? (4) — exclamou o homem, demonstrando inusitado interesse, talvez porque a família do pai de Lázaro, conforme lhe disseram, era gente muito conhecida na região do Lago Grande. — E tua mãe?

 

— É Raimunda, conhecida por Guida — informou, mas disso não tinha certeza, pois, nas andanças dessa titica (5) de vida que ele levava, jogado daqui pra lá e de lá pra cá, nas mãos de exploradores cruéis, disseram-lhe que seu pai havia morrido e a mãe era viva, mas isso agora pouco ou nada lhe valia.

 

Como ia acreditar no que lhe diziam, se crescera como órfão pelas beiras de rios, comendo o que o diabo amassou e bebendo o sangue de Jesus Cristo, só que misturado com o mijo e a bosta que algum fazendeiro filho da puta ou um de seus filhos, como o Antônio, lhe davam?

 

— Então és filho da Guida?! — exclamou o homem.

 

— Sim — confirmou Lázaro.

 

— Como é o nome do pai dela?

 

— Dino, assim me disseram — respondeu.

 

Então “Dr. Cazuza” chamou a mulher e disse-lhe:

 

— Sabes, mulher, que esse menino é filho da Guida com o Pachico, filho do velho Carará, irmão do Dico e do Dino? Virando-se para Lázaro, falou: — Poxa, rapaz, conheço a tua mãe e conheci o teu pai; um dia ele te trouxe para ser batizado no Curuai, és meu afilhado.

 

Depois dessa descoberta, aram a lhe tratar ainda melhor, não que fossem bons de verdade, mas porque viam no “afilhado” o serviçal que sempre pediram a Deus. Acostumado a ser maltratado nas casas dos seus “protetores”, Lázaro pressentiu as “bondades” que estavam reservadas para ele naquela casa, e logo imaginou uma maneira de ver-se expulso dali. Foi assim que, certo dia, de propósito, deixou que as malditas latas cheias de água se esborrachassem no chão, de maneira a se tornarem inúteis, o que levou o seu protetor a dizer-lhe o que já poderia ter dito — mas não disse porque ainda cria que o menino pudesse continuar lhe servindo:

 

— Rapaz, tua mãe mora em Belterra com um caboclo chamado Carmelo — disse “Dr. Cazuza”.

 

Lázaro não sabia o que lhe dizer, pois não tinha noção do que fosse ser filho de alguém. No dia em que nasceu, deve ter visto o rosto da mãe, mas perdera a lembrança. De qualquer modo, ficou contente em saber que era verdade que a mãe estava viva.

 

— Queres ir para junto dela? — perguntou o homem, certamente querendo livrar-se dele por causa das latas amassadas e outros prejuízos que lhe vinha causando.

 

— Quero! — respondeu Lázaro.

 

— Pois vou te enviar — garantiu-lhe “Dr. Cazuza”.

 

Lázaro ficou ali ainda algum tempo, até que um dia o homem lhe disse:

 

— Em Santa Irene mora o teu tio Dico, mais conhecido como Velho Dico; não sei o endereço dele, mas não será difícil achar, pois Santa Irene é muito pequena, termina na igreja de São Raimundo.

 

O edifício mais valioso de Santa Irene era o Teatro Vitória, construído na época áurea da borracha (6); pena que, tempos depois, ficou em ruínas e um alcaide desastrado, em vez de restaurá-lo, mandou demolir.

 

O velho Dico morava nos fundos de uma fábrica de beneficiar arroz, que ele vigiava, perto do teatro. Vivia com a sua “velha” Mundica; nunca tiveram filhos.

 

— Sei que tua mãe mora lá, mas não sei onde — disse “Dr. Cazuza”, voltando ao assunto. — Ponho-te no barco de um conhecido meu que vai para Santa Irene, se assim quiseres.

 

— Quero — disse-lhe Lázaro, de pronto.

 

Nunca esqueceu dessa viagem. Meio-dia, batelão grande, à vela, riscando as águas barrentas do rio Amazonas. Viajar de batelão era uma novidade para ele, que só tinha viajado de canoinha. Olhando para dentro do rio enxergava o seu rosto fininho e pálido no fundo da água, e sentia medo, vertigem, parecendo-lhe que ia cair dentro d’água. Olhava para as águas do rio e se recolhia, mas uma força estranha fazia-o olhar novamente para as águas, para ver se ele ainda estava lá embaixo. Isso se repetiu muitas vezes, até chegarem a Santa Irene. Lázaro ficou ali no porto, junto com a tripulação do barco, até que este voltou para o Lago Grande. Antes, porém, o dono do barco perguntou:

 

— Onde você vai ficar, menino?

 

— Deixe-me aqui na beira do rio — respondeu Lázaro.

 

 

 

***

 

 

NOTAS:

 

1) Pávulo: Vaidoso, no linguajar caboclo.

 

2) Cambão: espécie de vara levada sobre um dos ombros e em cujas extremidades sustentam-se duas latas ou baldes com água.

 

3) Xilindró: xadrez.

 

4) O jesuíta Gabriel Soares de Sousa (Notícia do Brasil, 2ª Parte, Cap. CL) e José de Anchieta (Arte da Gramática...) informam que faltavam ao tupi antigo três letras do ABC, que são “F”, “L”, “R” grande ou dobrado, de tal forma que para dizerem Francisco diziam Pancico (ou Pachico); para dizerem Lourenço diziam Rorenço; para dizerem Rodrigo diziam Rodigo.

 

5) Titica: excremento popularmente ligado à galinha, linguagem infantil para merda, cocô, fezes, etc.

 

6) Época áurea da borracha: ciclo econômico ocorrido no entresséculos XIX-XX, baseado na coleta da hevea brasiliensis (seringueira nativa da floresta amazônica) e na exploração da mão-de-obra semiescrava, formada pela gente expulsa pelas secas periódicas do Nordeste brasileiro.

 

OBS: A edição impressa e completa do romance “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

Capítulo IV ESTRANHO MUNDO

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP.




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