Gov desmatamento


A BONDADE DE LEVINDO 8z5h

Nicodemos Sena - 19/02/2025

Créditos: Manuel Paryat

 

 

 

LÁ, SEREMOS FELIZES

 

Romance de Nicodemos Sena,

com gravuras de Manuel Paryat.

 

***

 

Para o “menino” Bernardino Sena,

com gratidão, sempre.

 

***

 

“Ah! que a tarefa de narrar é dura

essa selva selvagem, rude e forte,

que volve o medo à mente que a figura.”

Dante Alighieri

(Inferno, Canto I)

 

 

***

 

 

Capítulo VI

 

A BONDADE DE LEVINDO

 

 

 

“Não existe grandeza onde não há

 simplicidade, bondade e verdade.”

Leon Tolstoi

(Ressurreição)

 

 

 

 

De pé, no porto da cidade, com sua bagagem na mão, Lázaro ficou olhando para o barco que partia. No saco de pano que lhe servia de mala, nada mais do que uma rede velha e puída, pois só possuía a roupa do corpo. Com o saco nas costas, ficou zanzando pela praia. Mas não se enrascou. Carregava peixe da beira para o mercado em troca de comida; quando não tinha o que carregar, pedia.

 

Santa Irene, nessa época, era uma cidade muito pequena. No lugar onde hoje está o Mercado Municipal funcionava uma usina-caldeira que, à noite, fornecia luz à cidade. Às 3 da tarde, o foguista metia fogo na caldeira e às 6 a usina apitava — piiiiiiii.... Então as luzes se acendiam, luzes muito fracas, mas, ainda assim, a cidade se iluminava. A lenha que movia a usina, trazida do interior, era amontoada na praia. No verão, quando o rio vazava, alguém precisava carregar a lenha da praia para a caldeira.

 

Certa noite, depois de vagar duas semanas pelas ruas arenosas e esburacadas de Santa Irene, dormindo nos galhos de alguma frondosa mangueira, Lázaro se achegou à dita usina e foi ali se encostando. Em meio à penumbra, quase não consegue divisar a figura de um homem preto, de pequena estatura. Era o foguista da usina, de nome Levindo. As pessoas precisavam falar alto, gritar, para ele ouvir. Só fazia Hem, Hem...

 

Levindo era um sujeito bom e bacana, até porque, não podendo falar, não enchia o saco de ninguém. ava a noite naquele negócio de carregar lenha da beira do rio para a caldeira. Lázaro, já na primeira noite, se entrosou perfeitamente com ele, ando a ajudá-lo a carregar a lenha. Então Levindo convidou Lázaro a ficar na praia com ele, e Lázaro acabou ficando muitas noites na praia carregando lenha com Levindo. Em troca, Levindo repartia a sua comida com Lázaro. Certo dia, o foguista perguntou de onde Lázaro era e de onde tinha vindo, e se era filho dali... Lázaro teve que gritar no ouvido do Levindo que viera do Lago Grande.

 

— Hemm? Hemm? De onde? Do Lago Grande?! — até que Levindo entendeu. Era uma dificuldade danada conversar com ele. Emitia uns grunhidos que as pessoas tinham que interpretar. — Quem é tua mãe? — perguntou, gritando, pois surdo-mudo só “fala” gritando.

 

— Guida!!! — gritou mais alto Lázaro.

 

— Guuuiiideeee? — repetiu Levindo.

 

— Sim. Guida — confirmou Lázaro.

 

Levindo tornou a grunhir e o menino entendeu que perguntava se ele tinha parentes em Santa Irene.

 

— Tenho um tio, mas não sei quem é! — gritou Lázaro no seu ouvido.

 

Então Levindo fez um alvoroço dos diabos, seu pescoço tufou que nem pescoço de galo rouco para dizer que conhecia um homem que podia ser o tio de Lázaro. Conhecera-o na igreja que ambos frequentavam.

 

— Como mesmo é o nome desse teu tio?!! — perguntou — melhor dizendo, grunhiu — o Levindo.

 

— Não Sei! Só sei que chamam ele de Dico!

 

Nessa época, Lázaro não sabia que o nome desse seu tio-avô era Raimundo, que alguns chamavam de “Mundico” e a maioria só conhecia por “Dico”.

 

— Ham...? Diiiiiiiico? — tornou Levindo, ficando um bom tempo com a boca aberta, até que conseguiu dizer Dico. — Conheço! Eu conheço o Dico! Ele é teu parente? — grunhiu novamente, mas Lázaro entendeu.

 

— Não sei.

 

Na verdade, Lázaro ainda duvidava de que Levindo conhecesse mesmo os seus parentes.

 

Levindo prometeu conduzi-lo na manhã seguinte à casa do velho Dico, que, segundo ele, era “aliiiii peeertoo”.

 

Às 7 da manhã, Levindo cumpriu o prometido; levou Lázaro à casa do seu tio-avô Dico. Chegou lá e bateu no portão. Era uma casa grande, no fundo do terreno. Na frente ficava uma usina de arroz que o velho vigiava. Bateu, bateu... até que um senhor já velhusco abriu a porta.

 

— Olha o Levindo aqui! O que queres, Levindo? — falou alto o homem, sabendo que o foguista era surdo.

 

Grunhindo e gesticulando com todo o corpo, Levindo anunciou que viera trazer-lhe o pirralho que dizia ser seu parente e que estava há quase um mês lá na praia com ele.

 

— Meu parente?! — repetiu o “velho”, estranhando.

 

Continuando em seu torturante grunhido, Levindo disse que sim, que Lázaro dizia ser seu parente.

 

Levindo disse isso e se foi, nunca mais Lázaro o viu, mas nunca se esqueceu dele, pois foi bom para ele, deu-lhe abrigo, companhia e comida. É verdade que a “bondade” de Levindo não era completamente desinteressada, pois fazia Lázaro carregar lenha nas costas da praia até a usina. Apesar disso, somando e diminuindo, Levindo tinha muito saldo.

 

Depois que o Levindo se foi, o ancião perguntou de onde Lázaro tinha vindo.

 

— Vim do Lago Grande — respondeu Lázaro.

 

— Do Lago Grande? Quem é tua mãe? — tornou o velho.

 

— Guida!

 

— E quem é teu pai?

 

— Meu pai é Francisco!

 

(“Era” Francisco, melhor dizendo, pois a grande peste o levara). (1)

 

Então o homem chamou a mulher, Dona “Mundica”, a quem o Levindo, ninguém sabe por que, chamava de “velha”, pois não era velha e até ainda era bem bonita, um tipão. E Lázaro, ali, na frente deles, com aquela barriga inchada que ele tinha e os pés no chão.

 

— Mundica! Vem cá! Olha só quem apareceu: um dos filhos da Guida! — pois o velho sabia que a Guida tinha quatro filhos.

 

— É o Lázaro! — exclamou a mulher.

 

Foi aquela alegria. A situação de Lázaro melhorou, ando a dormir no mesmo quarto com o Manuel, filho duma cabocla chamada Palmira, que vivia no Lago Grande e teve o azar de ficar viúva um ano depois do casamento, herdando do marido apenas o recém-nascido, que acabou sobrando para o velho Dico criar.

 

 

****

 

 

NOTA:

 

1) “Grande preste”: O autor refere-se à peste de impaludismo (na verdade, grande mortandade produzida na população da Amazônia pelo agente transmissor da malária, o mosquito anofelino) que ceifou, nos idos de 1930, grande parte da população da região do Baixo-Amazonas.

 

OBS: A edição impressa e completa do romance “Lá, seremos felizes” já se encontra à venda no site da Kotter Editorial. Veja AQUI

 

 

LEIA MAIS:

 

Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?

Capítulo II DENTRO DE UM BREJO

Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO

Capítulo IV ESTRANHO MUNDO

Capítulo V O ROSTO PÁLIDO NO FUNDO DA ÁGUA

 

 

* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu,  em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP.




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