ESTRANHO MUNDO 3sb1z
Créditos: Crédito: Ilustração: Manuel Paryat
LÁ, SEREMOS FELIZES
Romance de Nicodemos Sena,
com gravuras de Manuel Paryat.
***
Para o “menino” Bernardino Sena,
com gratidão, sempre.
***
“Ah! que a tarefa de narrar é dura
essa selva selvagem, rude e forte,
que volve o medo à mente que a figura.”
Dante Alighieri
(Inferno, Canto I)
***
Capítulo IV
ESTRANHO MUNDO
“Agora aram uns instantes em que a imaginação, como inseto noturno, saiu da sala para recordar os gostos do verão e voou distâncias que nem a vertigem nem a noite conhecem.”
Felisberto Hernández
(O cavalo perdido)
Começou perguntando se o rapaz se lembrava dos dias que aram juntos na casa de um fazendeiro chamado Pajurá, homem malvado, que tratava o gado e os seus doze filhos da mesma maneira. “Tu estavas lá, na casa do Pajurá, lembras?”. E o rapaz acabou dizendo que se lembrava, ou pelo menos procurou imaginar que se lembrava, pois qual a diferença entre lembrar e imaginar? Onde termina a sanidade e começa a loucura? Qual a relação entre memória e esquecimento? Chegou a pensar que estava louco, pois, querendo esquecer o ado, refugiava-se na imaginação, e isso não o agradou. “Não adianta fugir; a imaginação não é mais do que a memória enlouquecida”, pensou. Os fatos, ainda que imaginários, afiguravam-se melancólicos e sombrios, como se essa voz que relata a história de Lázaro saísse do seu próprio peito, lambuzada de sangue, espuma e cólera.
A casa ficava no meio do campo, longe do porto, para onde o Pajurá mandava o pessoal buscar água em baldezinhos de cuia. Ninguém escapava do velho, muito menos ele, barrigudinho, empombado, cheio de vérminas, com água pela canela, choramingando sob o peso do balde.
“Mamãe! Quero mamãe...”, chamava ele, sem saber quem era a sua mãe, pois estava sem ela desde que se viu no mundo. Sabia que a mãe não ia aparecer, mesmo assim chamava: “Mamãe! Quero mamãe!”
Chamava baixinho, pois, se o Pajurá ouvisse, logo gritava: “Queres tua mãe, tapuinho? (1) Ela está aqui. Vem aqui com ela!”. E, quando o menino subia do porto, o velho surrava-o com prazer, na frente de todos. Pois reinava sobre todos. Minto, sobre todos não, pois havia o Venâncio, o filho mais velho, o único que ousava enfrentar o pai, e por isso o velho se irritava com o Venâncio, mas tinha que á-lo, pois esse filho era o seu braço direito nos negócios.
No inverno, arriscando-se pelo meio do lago num batelão (2) à vela, Venâncio conduzia o gado para a terra-firme. No verão, trazia os animais para a várzea. Sim. Por isso o velho o respeitava; no mais, batia em todos.
A miséria naquele lugar era imensa. Os pais, querendo proteção, vinham pedir que o Pajurá fosse padrinho de pelo menos um de seus filhos. Difícil compreender por que os pais traziam seus filhos para o velho e nem por que este, sendo tão mau, recolhia as crianças.
Pajurá vivia no meio duma renque de afilhados (3) e nenhum destes escapava da muxinga (4) do padrinho, que dormia com as mulheres e os filhos na casa-grande, longe do barracão destinado aos moleques e aos empregados.
O Venâncio era o único filho que não dormia na casa-grande. Para irritar o pai, preferia juntar-se aos peões, pois se opunha às malvadezas do velho, que por isso o hostilizava, quase não se falavam, e, quando isso acontecia, era só no grito.
— Venâncio, seu filho da puta, vem cá! — bradava o velho.
— O que tu queres, velho duma figa?! — retrucava na bucha o Venâncio.
Mas nunca se atracaram, até porque o velho era prevenido e andava com rifle no ombro, facão na bainha e relho na mão. Não precisava de motivos para meter o relho no lombo do moleque que se atrevesse a ar perto dele. De madrugada, gritando “acordem, seus filhos da puta!”, Pajurá descarregava a espingarda para o alto e acordava todo mundo. Aturdidos e pouco enxergando, uns iam encher água, outros limpavam a vacaria e o restante ordenhava as vacas com o Venâncio. E ai que o velho pegasse alguém deitado! Metia o chicote.
Quando isso acontecia, o Venâncio, fulo de raiva, gritava:
— Ainda é noite, velho filho da puta! Deixa os homens dormirem!
E o velho fazia de conta que não escutava.
Os peões, por medo, obedeciam, sem resmungo. Mas gostavam mesmo era do Venâncio, e não do velho, pois este, além de violento, era sovina. Ordenhavam as vacas, mas não podiam beber sequer uma gota do leite; só bebiam quando o Venâncio, à noite, trazia escondido o leite que ele tirava de dia.
Havia muito peixe no lago. Talvez por isso o velho não sovinava. Bem cedo, as mulheres pegavam uma bacia grande ou um alguidar (5) e enchiam de farinha com água, e o pirão (6) logo estufava. Às 11, um pau batia num ferro, a modo de sino, anunciando o almoço. A molecada e os homens se perfilavam. A mulher mais velha do Pajurá, chamada Clotilde, atrás duma mesa com jeito de balcão, servia o peixe e o caldo numa cuia, e a concha de pirão noutra. Depois de comer, peões e moleques iam à beira (7) lavar os “pratos”, voltavam ao barracão e metiam a vasilha na palha da parede.
Todo santo dia era isso. Só o Venâncio não temia o Pajurá. Se o velho chegava de madrugada e encontrava os moleques dormindo, metia — tiaaáááá! — o relho no lombo de todos.
Venâncio sentia pena do menino porque este sofria de incontinência urinária e mijava na rede toda noite. Na verdade, Venâncio era tão mau quanto o pai, e só os defendia para irritar o velho. Se fosse só o Venâncio e eles, faria o mesmo. Diante do Pajurá, no entanto, parecia bom, e isso, para eles, fazia uma boa diferença.
Certa vez, todos foram à festa, inclusive o Venâncio e seus irmãos, e os meninos ficaram sós no barracão. Tão logo os homens saíram, o velho foi até a rede de Lázaro e amarrou a sua pomba com um fio e prendeu no punho da rede, para que acordasse quando viesse a vontade de urinar. Encolhido na rede, o coitado morria de medo.
E o velho gritou:
— O filho da puta que desamarrar a pomba do Lázaro vai prestar contas comigo!
Quando Lázaro despertou, lá pelas tantas, com a bexiga estourando de cheia, pensou em desamarrar a pomba, mas lembrou das palavras do Pajurá.
O Venâncio chegou de madrugada, bêbado, e se deitou na rede, mas o choro de Lázaro não o deixava dormir? Então o Venâncio falou: — Ê, filho da puta! Quem é essa criatura que tá aí e não me deixa dormir?
— Hammm... Hammmm... — Lázaro choramingava.
Todos sabiam, mas ninguém se atrevia a dizer ao Venâncio que o velho tinha feito aquilo.
Venâncio levantou-se e repetiu:
— Quem é o filho da puta que não me deixa dormir?
Acendeu a lamparina, levantou a beira da rede do menino. Quando viu a sua situação, gritou horrorizado:
— Porra! Quem fez isto no menino?!
— Foi o teu pai — alguém informou.
Então o Venâncio gritou mais alto:
— Velho filho da puta, se és homem vem amarrar a minha pomba também!
Em seguida, puxou o facão da bainha e cortou o fio que amarrava a pomba de Lázaro. Tchiiiiiii, fez a infeliz, e o mijo esguichou molhando Venâncio, que tornou a gritar, enfurecido:
— Morre gente aqui hoje! Ou eu ou aquele filho da puta vai morrer!
Pois o velho ia criar caso; disso sabia o Venâncio.
Dito e feito. De madrugadinha, antes de ir ordenhar as vacas do curral, o velho levantou-se e veio tão certo de que Lázaro continuava preso que, quando não o viu na rede, gritou:
— Quem foi o filho da puta que desamarrou o infeliz? Aparece, filho da puta!
O Venâncio, que àquela hora já ordenhava as vacas no curral, gritou: — Fui eu! E falou para o pessoal: — Hoje vai morrer gente aqui, pois quando o velho vier vem mesmo; ou ele me mata ou eu mato ele.
Pois Venâncio tinha levado um rifle de doze balas.
Havia uma ponte grande que ligava a casa-grande ao trapiche (8). Mais adiante, uma ponte menor levava ao curral. Não achando Lázaro na rede, o velho gritou, repetidamente, e foi-se para casa.
Lá pelas 6 da manhã, o Venâncio disse “olha, o velho vem!” e mandou que o Lázaro se escondesse. Depois disse à molecada que vigiava os bezerros ou carregava leite:
— Toca a se esconder todo mundo, que eu enfrento o velho; hoje não tem jeito!
Mal terminou de falar, o velho veio de lá e, já perto do curral, gritou com voz terrível:
— Venâncio!!!
E calou-se.
Todas as crianças e mesmo os homens barbados esconderam-se atrás do curral.
— Tô aqui! O que o senhor quer? — manifestou-se o Venâncio.
— Ó filho da puta, quem te deu ordem para desmanchar o pirralho? — tornou a gritar o velho.
— Desmanchei porque quis! — gritou mais alto o Venâncio. E esculhambou: — Seu filho da puta! Velho malvado!
Então o velho pegou o rifle e disse, encolerizado:
— Vou te matar, filho da puta!
O velho sabia que o filho era macho, mas não imaginava que estivesse armado. Quando disse “vou te matar!”, o Venâncio se escondeu atrás do curral e apontou o rifle para o pai, gritando:
— Pode atirar, velho filho da puta! Mas se errares serás um homem morto.
E continuou esculhambando.
E não foi que o velho, surpreendido, murchou? Pois compreendeu que o filho não estava brincando. Então abaixou a arma, e a turma dele veio — a mulher, a mãe, os outros filhos, as filhas — e se abraçaram com o velho e o levaram para casa.
Naquele dia, depois de ordenhar as vacas, Venâncio disse:
— Pessoal, vou embora daqui, porque se ficar mato ou morro.
Então todos se agarraram com ele e choraram, dizendo “não vai não, Venâncio!”, porque Venâncio era a única pessoa capaz de enfrentar o velho.
— Vou embora sim! — disse, já indo para o porto, onde havia três batelões. Escolhendo o menor dentre os batelões, chamou seus capangas e ordenou que armassem o barco e suspendessem as velas. Antes, porém, pegou suas coisas no barracão. Quando ia saindo, o velho, que via tudo de longe, gritou:
— O que é isso, rapaz?! Vem falar comigo!
Já dentro do batelão, Venâncio respondeu:
— Não tenho nada com o senhor. Não se meta na minha vida. Fique aí com as suas merdas!
Só se tratavam assim.
— Não, rapaz, não vai! — pediu o velho, preocupado, pois, como já foi dito, o Venâncio era o seu braço direito; os outros filhos eram uns inúteis, só bebiam cachaça.
Com o restante da família, D. Clotilde desceu a bordo e implorou ao filho que não se fosse. Venâncio, que parecia ter feito todo aquele bafo somente para espantar o velho, acabou ficando. Então o levaram para perto do velho, e este, sentado na cabeceira de uma mesa grande, na sala, disse ao Venâncio:
— Venâncio, chama todo o pessoal da fazenda: moleques, gente grande, todos!
Venâncio obedeceu, e todos vieram. O velho ordenou que se sentassem. Não havendo banco para todos, sentaram-se no chão.
— De hoje em diante — disse o velho — quem manda no pessoal, na fazenda e na família é o Venâncio; entrego-lhe todo o comando.
Nem o Venâncio esperava por tal desfecho. Ficou boquiaberto, sem saber o que dizer, até que, ada a surpresa, impôs algumas condições.
— Tudo bem — concordou o velho. — Em tudo agora és tu quem manda.
O trabalho continuou duro, mas, daquele dia em diante, tudo melhorou para peões e agregados da fazenda. Até leite já tomavam! Não que o Venâncio fosse lá grande coisa, pois, se alguém bobeava, a mão dele logo zunia no ouvido do malandro, mas ninguém reclamava. Lázaro até gostava; era como se o Venâncio fosse um pai para todos eles, mas sabiam que, quando este assumisse o lugar do Pajurá, tornar-se-ia tão mau quanto o velho. Naquele lugar, parecia direito manobrar gente como se fosse coisa. Eles aceitavam os abusos, eram muito fracos, precisavam de apoio. Só de Venâncio dormir com eles no barracão já era um conforto.
O rapaz compreendia a resignação de Lázaro diante das forças que o subjugavam, pois a vida desse estranho personagem parecia-se muito com a sua; todavia, quem era mesmo esse menino que surgiu como que do nada e cuja história se entranhava com a dele e tanto interesse lhe despertava?
***
NOTAS:
1) Tapuinho: (do tupi) indiozinho manso.
2) Batelão: grande canoa para transporte de cargas.
3) Afilhados: na relação de “compadrio” que se estabelecia entre o fazendeiro e os pais pobres da Amazônia, os “afilhados” entregues em tenra idade ao “padrinho” (paizinho) tornavam-se serviçais do “protetor”.
4) Muxinga: chicote feito de couro de boi.
5) Alguidar: do árabe: Al-giDãr. Vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, para usos domésticos.
6) Pirão: do tupi, Midipirõn. Papa grossa, de farinha de mandioca escaldada; ensopado, embebido em água.
7) “Beira”, na Amazônia, significa “água do rio” ou “porto”, em oposição à “terra”.
8) Trapiche: onde se descarregam as mercadorias.
OBS: O texto completo do folhetim “Lá, seremos felizes” já se encontra em pré-venda no site da Kotter Editorial, no formato impresso. Veja AQUI
LEIA MAIS:
Capítulo I PAPAI, ME LEVA AO JARDIM?
Capítulo II DENTRO DE UM BREJO
Capítulo III A NOITE DENTRO DE UM CAROÇO
* Nicodemos Sena nasceu em 1958, no município de Santarém, Estado do Pará, Amazônia brasileira, e ou sua infância entre indígenas e caboclos do Rio Maró. Em Santarém, foi aluno da Escola Barão do Rio Branco, Ginásio Batista e Colégio Dom Amando. Em 1977, vai para São Paulo onde se forma em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e em Direito, pela Universidade de São Paulo (USP). Repórter e redator em órgãos da imprensa de São Paulo, retorna ao Pará em 2000, no posto de diretor de redação de “A Província do Pará”. Sua estreia literária acontece em 1999, com o romance "A Espera do Nunca Mais - Uma Saga Amazônica" (1.112 páginas, 3a. edição, Kotter Editorial, Curitiba, 2020), com o qual recebeu, em 2000, o Prêmio Lima Barreto/Brasil 500, concedido pela União Brasileira de Escritores (Rio de Janeiro). É também autor dos romances "A Noite é dos Pássaros" (Prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras, 2004), "A Mulher, o Homem e o Cão" (2008) e "Choro por ti, Belterra!" (2017), e do livro-poema "Ladrões nos Celeiros: Avante, Companheiros!" (2018). Conselheiro da União Brasileira de Escritores (UBE/SP). Membro efetivo da ALAS-Academia de Letras e Artes de Santarém (PA) e da ATL-Academia Taubateana de Letras (Taubaté-SP). Reside, atualmente, em Taubaté-SP.