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Memória de Santarém: 4i4c3r

Batalhas judiciais que tramitaram na Comarca de Santarém no Brasil Imperial - O preto Gaspar (Parte III) 2x1n6x

Série dedicada à preservação dos arquivos materiais e imateriais de Santarém, estado do Pará, revela nuances da política, da sociedade e da economia, nos séculos XIX e XX

Editor: Lúcio Flávio Pinto - Miguel Oliveira/Redator interino - 01/06/2025

Reprodução do jornal O Baixo Amazonas, edição de março e outubro de 1872 - Créditos: Arquivo

 

 

 

Com base em documentos do Centro de Documentação Histórica do Baixo Amazonas(CDHBA, da Universidade Federal do Oeste do Pará, o professor Rodrigo Caetano de Souza, em sua Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História  da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mergulhou em centenas de processos do Fórum da Comarca de Santarém, do século XVIII, e de lá emergiu com vários casos emblemáticos de disputa judicial sobre propriedade e posse de escravos que, mesmo alforriados, tiveram que recorrer à justiça para garantir suas liberdades, ou de outros, que submeteram escravos aos rigores da lei imperial, como das escravas Thereza e Ana Maria, o mulato Severiano, a mulata menor de idade Erimiteria e o preto Gaspar.

 

O preto Gaspar ( Gaspar Felipe Laudegerio, tinha 32 anos, era solteiro, prestava serviço de lenhador e morava na cidade de Santarém) foi condenado a pena perpétua de remar em galés, será tratado nesta edição de Memória de Santarém.

 

Os casos das escravas Thereza e Ana Maria e do mulato Severiano são tratados nas edições anteriores. Leia AQUI e AQUI.

 

O caso da mulata Erimiteria, de 12 anos, vai encerrar esse capítulo sobre escravidão, alforria e justiça.

 

 

O preto Gaspar e a busca por alforria que incorreu em um crime

 

 

Na primeira vez em que Gaspar surge no jornal Baixo Amazonas, ele nem é nomeado. Conforme pode ser visto no anúncio a seguir:

 

Tesouro achado.- Em a vila de Alenquer um escravo achou no mato uma soma avultada de dinheiro em ouro, e revelando o seu segredo ao português João Soares, por antonomásia Joao Redondo, este foi desenterrá-lo e apossou-se dele. Procedeu- se ao inquérito policial e o resultado acha-se em mão do promotor para dar a denúncia.

 

No anúncio o jornal se limita a citá-lo como “um escravo”. No caso narrado pelo anúncio verifica-se a possibilidade de uma conhecida lenda ter se tornado realidade. Para além das lendas dos tesouros de piratas, as narrativas em torno do enterramento de riqueza por pessoas comuns não são raras, pelo menos nas cercanias do Rio Tapajós, e ao que parece não se limitam à Amazônia  . A existência de luzes que conduzem a tesouros, lugares com baús abarrotados de peças de valor, potes de moedas de ouro, entre outras, acompanham a memória de muitos sujeitos.

 

Todavia, o evento gerou um inquérito policial. De imediato, fica evidente que as fronteiras fluidas entre escravidão e liberdade se faziam presentes. O português João Soares, ou João Redondo, aproveitou-se da informação do escravo e lhe tomou o ouro se apossando das riquezas. Nada se informa sobre a veracidade do encontro, sobre quem era o escravo, a quem ele pertencia, qual a relação dele com João Redondo. Algum tempo depois, essa informação voltará à tona, só que em pinceladas menos agradáveis, a tela pintada pelo articulista seria manchada de sangue.

 

O periódico, tão habituado aos enfadonhos discursos elogiosos ao partido católico conservador, com longos editoriais criticando e zombando do partido rival, dedicava um espaço considerável para a divulgação do fato ocorrido.

 

Na edição de número 14, no sábado de 12 de outubro de 1872, o jornal se propôs a anunciar o inquérito policial, mas devido ao espaço do jornal não seria possível ir além de algumas partes do processo. Assim sendo, a notícia ocupava a primeira página completa e mais que o terço da segunda. Veja-se por parte para entendimento do ocorrido.

 

ASSASSINATO HORROROSO! Impressionados ainda pelo fato do mais horrível canibalismo, cujos tristes resultados lamentamos, e que vamos desdobrar ante os olhos dos nossos leitores, um quadro lúgubre em cujo fundo se veem dois cadáveres horrivelmente mutilados e uma fera com figura de homem a ensopar as mãos num lago de sangue, ainda quente, que esse monstro fez jorrar do corpo de dois infelizes que caíram exangues aos terríveis golpes que sobre eles desapiedadamente descarregou o cruento assassino!

No dia 7 a população desta cidade possuída de legítimo pasmo viu desembarcar-se neste porto e serem conduzidos em padiolas para o cemitério dois cadáveres horrivelmente mutilados, assassinados bárbara e cruelmente. Eram as duas vítimas, uma de ambição e outra de sua lealdade e dedicação. Eram os cadáveres do israelita Jacob Cohim e do preto Eustáchio, escravo, que sucumbiram aos terríveis golpes de terçado brandido sobre eles pelo perverso assassino, preto Gaspar, escravo, único protagonista do drama sanguinolento que vamos historiar.

 

Um dos primeiros aspectos que saltam aos olhos é o destaque que se deu ao título no texto original, grafado todo em caixa alta. Isso funciona como uma espécie de ordem visual. Está em caixa destacado, deve ser relevante. Assim que tem atenção, o articulista sabe que precisa mantê-la, e é aí que entra o poder do enunciado, a frase precisa deixar o leitor em alerta. Assim sendo, o título ASSASSINATO HORROROSO! expressa de imediato duas informações, que houve uma morte causada por alguém e que o desdobramento do evento foi traumático, caótico e assustador. O uso de frases como “fato do mais horrível canibalismo”, “um quadro lúgubre”, “horrivelmente mutilados”, “fera com figura de homem”, “ensopar as mãos num lago de sangue, ainda quente”, “cruento assassino!” e “bárbara e cruelmente” vestiam a notícia de forma a parecer uma peça de teatro. Há um nítido recurso poético, mórbido, porém cabível na notícia. Com exceção da primeira frase citada, que ao que tudo indica foi criada pelo articulista para criar maiores expectativas no leitor. Caso acompanhasse com paciência o desenrolar da narrativa o leitor perceberia que o canibalismo fora usado de forma figurada. A metáfora expressaria a ideia de devorar vidas por meio das armas utilizadas e não a literalidade de devorar carne.

 

 

 

 

 

 

As referências artísticas são evidentes na narrativa, pelo menos na primeira parte do anúncio. O quadro era melancólico, triste e macabro. Posteriormente, o elemento essencial surge, os cadáveres estavam mutilados, ou horrivelmente mutilados; ao que parece, o articulista queria reforçar essa imagem, tanto que ela se repete no paragrafo seguinte. As outras adjetivações procuravam dar a dimensão do personagem, para que o leitor se familiarizasse, não apenas com ele, mas com as expectativas em volta dele. Ora “fera com figura de homem”, comparando a um animal selvagem em busca de presa. Ou ainda, “ensopar as mãos num lago de sangue, ainda quente”, uma ação calculista, intencional e imediata. Seguida por “cruento assassino!”, novamente a metáfora do sangue, o assassino tinha desejo de sangue, era sanguinário. Com “bárbara e cruelmente” o autor arremata, e o leitor fica conhecendo Gaspar.

 

Na notícia, o articulista destaca que a cidade acompanhou pasma a chegada dos corpos de duas pessoas ao porto da cidade. Tratavam-se do israelita Jacob Cohim e do preto Eustáchio, escravo do primeiro. Chama novamente a atenção o repertório usado agora para qualificar as vítimas: “Eram as duas vítimas, uma de ambição e outra de sua lealdade e dedicação”. Jacob Cohim recebia, mesmo morto, o rótulo de ambicioso. Este aspecto, da mesma forma que as categorias lealdade e dedicação associadas a Eustáchio, já apontavam algumas pistas do ocorrido. Por fim, o articulista é direto com leitor e declara que a peça sanguinolenta que se exibirá tem um protagonista, seu nome é Gaspar. Ou seja, não era sem propósito o recurso literário.

 

É a partir daqui que se sabe que o Gaspar dessa noticia é o mesmo sem nome que em Alenquer “declarou ter achado grande porção de dinheiro o que dera a um amigo guardar, tendo este fato sido noticiado por este jornal (...) -Tesouro achado”.  Entende-se que ele fora vendido há 3 meses para Geraldo Baptista Valente, capitão da Guarda Nacional . “Nesta cidade empregava-se em lenhador e como tal caminhava todos os dias para os arredores a oeste desta cidade.” Tais andanças em pouco tempo o fizeram conhecido na região, o que leva a crer que ele prestava serviços a muitos sujeitos na cidade, especialmente na chamada Aldeia localizada a oeste. Nessas condições, “Travou relações com dois judeus, Jacob Cohim e Salomão Sabba aos quais persuadiu de que ele conhecia o lugar aonde grande soma de dinheiro havia sido enterrada a longos anos”.

 

Novamente a história de um tesouro escondido; Gaspar, depois de 3 meses na cidade, sabia onde estava escondido. Não é possível conjecturar se realmente Gaspar falava a verdade, a existência ou não desse tesouro acaba ficando em segundo plano. No entanto, Cohim e Sabba deram ouvidos, possivelmente em razão de saberem da experiência de Gaspar em Alenquer. O fato é que Gaspar cobraria a revelação do segredo “mediante a quantia de um conto de réis.”

 

Ele mudou por seis vezes o depoimento, no que diz respeito não apenas à autoria, bem como sobre o desdobramento, como se verá aos poucos em cada versão.

 

Na primeira versão Gaspar assumiu que, mediante a garantia de pagamento no valor de 1 conto de réis, levou Jacob Cohim, Salomão Sabba e o preto Eustáchio até o local onde supostamente estava enterrado o ouro. Todavia, Jacob Cohim tinha concedido apenas 600$000 réis desse valor até aquele momento. De acordo com o relato, Eustáchio foi o primeiro a se embrenhar na mata juntamente com Gaspar, enquanto Cohim e Sabba banhavam-se no rio. Algum tempo depois, “Sabba ouviu um tiro e sobressaltou -se. Com este tiro acabava Gaspar de ferir mortalmente Eustáchio”. Cohim seguiu em busca de Eustáchio e é encontrado por Gaspar, que lhe “descarrega amiúde os golpes sobre o crânio do infeliz que prostrou-se desanimado deixando descoberta completamente estragada toda a massa encefálica.” Tais golpes ainda amputaram a mão esquerda de Cohim.

 

Voltando a Eustáchio, Gaspar lhe desferiu outros golpes com o terçado, deixando “o rosto complet amente disforme, e ambas as mãos e dedos cortados e só apenas seguros pela pele do lado anterior do braço”. Ao término do relato, o articulista promete publicar no próximo número o corpo de delito. Ao que parece, esse contexto violento, mostrava, para além de um caso isolado, uma cultura de violência introjetada na sociedade oitocentista, não restrita a uma classe ou posição social.

 

A partir da leitura da primeira versão surgem algumas questões. Havia 3 pessoas de alguma forma interessadas no desenrolar da história. Por que se separaram? A história apresentava nebulosidade com relação também à autoria. Teria Gaspar tido condições de realizar tal crime sem ajuda, sem cúmplices ou comparsas?

 

Estranhamente Salomão Sabba manteve-se incólume ao ocorrido, mesmo depois de ouvir os tiros, não seguiu em busca dos outros dois. Pode ser que tenha ficado responsável por guardar o dinheiro que seria usado para pagar Gaspar. O fato é que, conforme o relato, ele fugiu em uma canoa, sendo perseguido por Gaspar.

 

Na segunda versão, Gaspar apresenta-se a seu senhor e depois à polícia. Conforme ainda seu relato, ele mesmo procurou a polícia e chegou a guiá-los ao local. Ele afirmou ter visto Amâncio José Gomes de Almeida e outra pessoa matarem a tiros Cohim e Eustáchio. Para o articulista, tal comportamento é surpreendente; segundo ele, Gaspar apresenta nesta ação o “mais requintado cinismo, o que é irável em pessoa de sua condição e falta de instrução, e apresentar-se a seu senhor e este a polícia (...), com bastante presença de espírito” .

 

A mentalidade senhorial novamente dá as caras; nota-se no discurso do articulista que ações que exijam inteligência e autonomia seriam impensáveis em um escravo. Aqui, pode-se ver uma aproximação com alguns relatos de viajantes em relação aos indígenas.

 

Um exemplo contundente disso pode ser visto na relação conturbada entre o viajante francês François Auguste Biard e o indígena que foi seu guia, Policarpo. Gaspar e Policarpo, por sinal, apresentam aspectos que os aproximam, como o uso de meios variados para manter ou ampliar aquilo que acreditavam serem seus direitos.

 

Gaspar conduziu a polícia ao local para o recolhimento dos cadáveres, “havendo com isso numeroso concurso de povo, que acudia ao lugar”. Conforme o articulista, desde o momento que guiou os policiais até o lugar do ocorrido, alguns detalhes chamaram a atenção do “delegado o sr. Jose Caetano Correa ”.

 

O delegado, analisando o fato, “coligiu de pronto todos os alheios, entre os quais a arma de fogo e a patrona, a ensanguentada camisa do feroz Gaspar e o terçado (...).” Reunindo tais evidências, “se verificou ser o mesmo Gaspar o único criminoso.” Porém foi considerado cúmplice o citado Amâncio e também Salomão Sabba. Após busca na casa de Amâncio, conforme o articulista, nada que o comprometesse foi encontrado. Posteriormente, no segundo interrogatório, foi Amâncio inocentado. Sendo um sujeito importante, Amâncio poderia gozar de certa confiança, que pôde ter influenciado na decisão de inocentá-lo.

 

No conjunto de relatos disponível no jornal surgiu uma terceira versão. Gaspar citou “um seu irmão de nome Simeão e os parceiros deste, Manoelzinho e Fernando, todos escravos de Evilla Barrozo, e que ele Gaspar só os ajudara.”

 

E uma quarta, voltando a culpar Amâncio, agora mencionando um cúmplice, Fillipe, e que ele havia ajudado apenas.

 

Na quinta alegação, Gaspar declara que “SÓ ELE fora o autor das duas mortes; que ninguém o ajudara na perpetração dos crimes; e que tinha consciência de ter sido o único assassino dos infelizes Jacob e Eustáchio!”

 

No mesmo exemplar, o Baixo Amazonas apresenta a transcrição do auto de interrogatório. As informações desse relato abrem um universo de relações sociais, trocas e arranjos que se deram nos 3 meses em que esteve em Santarém o preto Gaspar. No início, perguntas básicas do tipo nome, idade e ocupação. Porém, quando é permitido ao escravo narrar os acontecimentos, ali se percebe a capacidade de articular a narrativa em volta de uma história real ou inventada.

 

Por meio do interrogatório, fica-se a par do perfil de Gaspar, seu nome completo era Gaspar Felipe Laudegerio, tinha 32 anos, era solteiro, prestava serviço de lenhador e morava na cidade de Santarém. Quanto inquerido sobre os assassinatos, o lenhador oriundo de Alenquer a a expor o cotidiano e algumas facetas de sua vida.

 

No relato Gaspar volta a se assumir como único autor das mortes, “que não estava em seu juízo; que o culpado de tudo fora Salomão Sabba”; a culpa atribuída a Salomão Sabba fará sentido posteriormente. O réu continua dizendo “que estando ele réu a cortar lenha, no campo, foi chamado por Eustáchio para ir falar a Salomão: que indo ao chamado ainda encontrou a Eustáchio no canto de Martinho, e lhe disse ainda ia a sua casa beber água”.

 

Esses detalhes serão fundamentais aqui, pois dão consistência para o relato. Lembrar-se de uma conversa paralela entre dois sujeitos, a localização de uma arma, entre outros, mostrava que o réu estava atento ao entorno.

 

De acordo com Gaspar, Salomão revelou o motivo de tê-lo chamado, afirmou que há 3 dias procurava o réu para mostrar o lugar onde o dinheiro havia sido enterrado. Durante a conversa estavam presentes Jacob Cohim, Eustáchio e a mulher de Salomão Sabba. Nesse ínterim, Jacob abriu uma garrafa de gengibirra ( bebida fermentada à base de gengibre (mangarataia) e compartilhou com Gaspar.

 

Logo fizeram um acordo, o réu mostraria o lugar onde estava enterrado o ouro e Salomão e Jacob lhe pagariam a quantia de 1 conto de réis, que ele usaria para comprar a sua alforria. Todavia, “Salomão apenas contou 110$000 réis, com que ele não se conformou, Jacob angariou o dinheiro até 600$000 réis, não conforme ainda exigiu que se completasse o conto de réis que era para a sua – liberdade. – Jacob assim o fez.”

 

Assim que ajustaram o acordo, Salomão seguiu em busca de uma canoa que conseguiu por parte de Leão Azuello. Na canoa seguiu Eustáchio em companhia de um paneiro e um saco para recolher o tesouro, por terra foram Salomão e Jacob. “Ele respondente foi adiante e em caminho Luiz Florêncio pediu-lhe que mediante a paga de meia pataca levasse a sua casa um porquinho, o que foi feito, e que prosseguiu sua viagem.” A narrativa de Gaspar é cheia dessas nuances, o que mostra que ele tinha o e contato livre com os moradores da cidade.

 

Ao que indicam os autos, Gaspar conhecia e era conhecido de muita gente; além de lenhador, prestava esses pequenos serviços. Durante os 3 meses em que esteve em Santarém o réu havia criado uma rede de contatos que lhe foram úteis antes do ocorrido. É exemplo do exposto Felippe de Santiago de Moraes, que nesse depoimento foi quem emprestou a arma, uma espingarda que seria usada para matar Cohim e Eustáchio, acredita-se que sem prever tal resultado, mostrando o grau de confiança que Gaspar inspirava nas pessoas que conhecia.

 

Continuando o relato, Gaspar explica que “chegando ao lugar do delito entrou para o mato acompanhando Eustáchio que era muito seu amigo, ficando os outros a banharem-se no rio.”

 

Outro elemento que até então não havia surgido nos autos era a pretensa amizade entre o réu e Eustáchio. Os vínculos entre escravos, libertos e livres não eram raros.

 

Aos alforriados se juntavam os escravos da mesma profissão. Forjadas assim no trabalho, entre os membros da mesma etnia, as amizades eram sólidas e duráveis, originando várias sociedades de alforria e de confrarias religiosas e constituindo elos de ajuda mútua e de solidariedade entre os escravos da cidade.

 

Nesta quinta versão, o réu resolve assumir o ato, mas não completamente, na medida em que afirma que foi impelido. O réu “sentiu-se dominado por um espírito vertiginoso que tudo quanto o rodeava lhe parecia feroz e até me smo o seu amigo Eustáchio”, por isso atirou nele. Porém, o tiro não o matou; vale ressaltar que a espingarda emprestada por Felippe era de espoleta. Ferido, Eustáchio deixou cair o terçado, a segunda arma, essa mais contundente; isso justifica o “horrivelmente mutilados” do início. Por fim, a golpes de arma branca, Eustáchio tombou. Posteriormente o mesmo ocorreu com Jacob. “Desse estado de entorpecimento de suas faculdades saiu, quando a beira do rio via escapar-lhe, (...) Salomão deitou a fugir empurrando para o meio a canoa em que se achava”.

 

Na declaração de interrogatório, aparecem outros detalhes que não foram inseridos nessa quinta versão; era uma nova mudança no depoimento, ava a ser a sexta versão para o mesmo caso. À semelhança da versão anterior, a narrativa é realizada evidenciando pormenores. Conforme o réu, ele tinha ido cumprir um mandado de seu ex-senhor, para arrumar uma canoa na casa de Raimundo Pereira da Silva; como não o encontrou, seguiu com a mesma missão à casa do Major José Caetano Correa, porém não estava em posse dela, por haver emprestado antes. Com isso Gaspar retornou à casa de seu ex-senhor.

 

A expressão ex- senhor não fica esclarecida nos autos, infere-se que diga respeito a três possibilidades: algum rompimento após a prisão, o réu prestava serviços a um antigo proprietário ou simplesmente foi alforriado durante o processo. “Seu ex-senhor lhe ordenou que fosse fazer lenha no campo e que voltasse cedo.” Na companhia do réu estava o agregado indígena Geraldo e ambos seguiram para cortar lenha. Por volta das 2 horas da tarde, com o objetivo de beber água, o réu desceu do campo pela Travessa Guajará e no caminho viu Eustáchio, que vinha pela Travessa dos Mercadores. Eustáchio o chamou para encontrar com Salomão Sabba.

 

Como é possível notar, há elementos que se tocam nas versões que foram transcritas para o jornal. Acredita-se que, realmente, antes do evento Gaspar tenha encontrado Eustáchio.

 

A narrativa de Gaspar a partir daqui permite entrever uma possível premeditação. Ele encontrou com Geraldo, seu parceiro de trabalho no sobrado localizado na aldeia, e no caminho se juntaram a José Baptista, irmão de seu senhor Geraldo Baptista Valente. Juntos eles seguiram à casa de Felippe e foram convidados a provar a qualidade do açaí, em seguida fumaram. Posteriormente, o réu tomou emprestada de Felippe a arma que seria usada no crime.

 

O encontro entre vítimas e supostos algozes ganha uma nova versão:

 

Seguindo ambos (Gaspar e Geraldo) foram banhar-se no porto, onde depois encontrou a Eustáchio. Estando eles a banhar-se chegou José Baptista saindo do mato, e eles saíram da água, Baptista disse a ele réu que entretesse o pretinho , que ele e Geraldo iam esconder-se no mato. Depois disto chegou Jacob e logo depois Salomão, e mais tarde nos (?). Chegou Eustáchio por canoa, que (?) tando (sic) a canoa, Salomão pediu a ele que trouxesse cachaça da qual ofereceu a ele réu, tendo todos ou outros também bebido. 

 

A praia do porto, além de espaço de trabalho, assumia a condição de ambiente propício para o encontro entre sujeitos de origens diversas. Nessa narrativa, aparecem dois escravizados, um agregado indígena, um sujeito da família Baptista Valente e dois israelitas. Essa sequência aponta o uso de bebidas alcoólicas ou fermentadas em pelo menos três momentos no dia dos assassinatos.

 

No primeiro momento Gaspar bebeu gengibirra oferecida por Cohim, no segundo degustou um estilado dado por Sabba, e no terceiro dividiu uma cachaça com os outros na praia. Após beberem, subiu Gaspar para o mato acompanhado de Eustáchio. O réu deu a arma de fogo a José Baptista, o qual, acompanhado do agregado indígena Geraldo, seguiram atrás até o ponto em que se divide o caminho. Segundo o relato armaram uma tocaia contra a vitima, “um pouco adiante estavam escondidos José Baptista e Geraldo, donde partiu o tiro em Eustáchio”. A vítima ferida correu, mas foi interceptada pelos dois algozes citados que a agrediram até a morte.

 

De acordo com essa versão, Gaspar tentou se aproximar dos dois, mas foi impedido por José Baptista, “que não se chegasse para não se sujar de sangue afim dos outros não o verem assim sujo.” Após assem Eustáchio, o réu voltou à beira da praia para chamar Jacob e Salomão com a justificativa de ver uma briga. Naquele momento, ambos ainda estavam se banhando. Jacob Cohim seguiu Gaspar pensando que a briga se dava em razão de Eustáchio, porém, ao chegar ao local, foi surpreendido por Baptista. Jacob tentou reagir e foi agarrado por Gaspar sem sucesso. Por fim Baptista e Geraldo matam Cohim. Posteriormente perseguem Salomão Sabba, que foge.

 

As evidências juntadas em todos os interrogatórios colocavam Gaspar não apenas na cena do crime, mas como algoz das vítimas em potencial. Considerando seu interesse no 1 conto de réis para poder tratar de sua liberdade, pode-se aqui ter um combustível para o assassinato. Todavia, a participação de José Baptista e do tapuio agregado Geraldo não se explica, estariam eles mancomunados para ajudar o amigo? Havia muita coisa em jogo, porém, não se pode descartar tal possibilidade.

 

Ao fim e ao cabo, o juiz acaba requerendo os depoimentos de “Maria Emília da Conceição Ferreira, Angélica de alcunha Tamborinha, José Baptista Valente, Felippe Fernando Primo de Moraes, o tapuio Geraldo, agregado, Antônio Rodrigues Lobo Bentes. Geraldo Baptista Valente e Salomão Sabba”.

 

Para piorar a nebulosidade do processo, surge o ex-senhor pedindo, supostamente, a Gaspar “que nunca descobrisse nada ao Barão de Santarém, Joao Victor Caetano, Joaquim Rodrigues e Dr. Amaral.” Isso mostra a preocupação do ex-senhor de Gaspar com a reputação e o status social. Ao que parece, o ex-senhor se preocupava com a aprovação simbólica dos citados sujeitos. Esses eram sujeitos importantes na sociedade santarena do século XIX e poderiam contribuir ou prejudicar o prestigio da família Baptista Valente.

 

As evidências juntadas em todos os interrogatórios colocavam Gaspar não apenas na cena do crime, mas como algoz das vítimas em potencial.

 

Considerando seu interesse no 1 conto de réis para poder tratar de sua liberdade, pode-se aqui ter um combustível para o assassinato. Todavia, a participação de José Baptista e do tapuio agregado Geraldo não se explica, estariam eles mancomunados para ajudar o amigo? Havia muita coisa em jogo, porém, não se pode descartar tal possibilidade.

 

Assim sendo, no dia 3 de novembro de 1872, no Paço Municipal da cidade de Santarém, ocorreu a Reunião do Júri. Foram apresentados 6 processos, entre eles o de Gaspar .

 

(...) são réus Joaquim Amâncio ramalho, (homicídio), João Baptista de Brito (roubo) Barbara Conceição (idem) (?) Do (?) Tiago (homicídio), Manoel da Costa Correa (idem), Gaspar F. Laudgerio (idem). Saiu o julgamento o (?) Acusado pelo crime de homicídio: O júri reconheceu ser (?) de 14 anos e ter (?) seu desconhecimento foi absolvido. No dia 5 subiu o processo em que é réu Manoel Francisco (...) Que foi pelo júri condenado a 13 anos de prisão simples (?) (?) Do art. 183 do código criminal. O juiz de direito dr. cometeu um erro no cálculo na (...).no dia 6 subiu o processo do réu Gaspar, autor dos bárbaros assassinatos dos infelizes Jacob e Eustáchio. O júri reconheceu o fato criminoso e todas as circunstâncias, foi condenado a galés perpetuas. O juiz apelou da sentença para a relação. Santarém, 28 de dezembro de 1872.

 

Após a formação do júri, seguiram-se os julgamentos, que se sucederam em dias diferentes do mês de dezembro. Infelizmente, as condições do exemplar consultado não permitiram compreender a sentença dos 3 primeiros réus. Suspeita-se que o próximo julgado tenha sido Thiago, acusado de homicídio, de 14 anos de idade; ao que parece foi absolvido em virtude de não ter tido a intenção ou não ser responsável pelo ato. 

 

Por sua vez, no dia 5 foi julgado Manoel, também por homicídio; foi condenado a 13 anos de prisão simples. No dia 6 subia ao tribunal o processo do preto Gaspar, ao que parece todo o trâmite do interrogatório levou 4 horas para ser concluído. Ao fim e ao cabo o réu foi condenado com a pena máxima para a época, as galés perpétuas, o que fez com que o juiz recorresse ao Tribunal da Relação, e leva a crer que o processo de Gaspar seguiu para a instância superior. O tapuio Geraldo e José Baptista Valente, ao que tudo indica, foram inocentados, a família Baptista Valente respirava aliviada. Um ano após o ocorrido, Gaspar voltaria a ser noticia ao se juntar a um grupo e tentar invadir a tipografia do jornal Baixo Amazonas, acompanhado de um tapuio, um norte-americano e um sujeito livre, ou seja, Gaspar continuava ativo na construção de vínculos com os mais distintos sujeitos e com os mais distintos objetivos.

 




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