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Memória de Santarém: 4i4c3r

Batalhas judiciais que tramitaram na Comarca de Santarém no Brasil Imperial - O mulato Severiano ( Parte II) 484033

Série dedicada à preservação dos arquivos materiais e imateriais de Santarém, estado do Pará, revela nuances da política, da sociedade e da economia, nos séculos XIX e XX

Editor: Lúcio Flávio Pinto - Miguel Oliveira/Redator interino - 25/05/2025

Créditos: Imagem ilustrativa

 

 

 

 

Com base em documentos do Centro de Documentação Histórica do Baixo Amazonas(CDHBA, da Universidade Federal do Oeste do Pará, o professor Rodrigo Caetano de Souza, em sua Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História  da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mergulhou em centenas de processos do Fórum da Comarca de Santarém, do século XVIII, e de lá emergiu com vários casos emblemáticos de disputa judicial sobre propriedade e posse de escravos que, mesmo alforriados, tiveram que recorrer à justiça para garantir suas liberdades, ou de outros, que submeteram escravos aos rigores da lei imperial.

 

Os casos das escravas Thereza e Ana Maria foram tratados nas edições anteriores. Leia AQUI 

 

 

LEIA TAMBÉM:

 

Tráfico de escravos (1877 a 1886) - Parte I
 

Tráfico de escravos (1877 a 1886) - Parte II
 

Batalhas judiciais que resultaram em liberdade para três escravos, que tramitaram na Comarca de Santarém no Brasil Imperial ( I Parte)


 

Os casos das escravas Thereza e Ana Maria foram tratados na edição anterior. Leia AQUI. O caso da mulata Erimiteria será publicado na terceira e o do preto Gaspar, na quarta-edição.

 

A pesquisa buscou compreender como escravos, libertos, libertandos e senhores, lidaram com as incertezas e inquietudes oriundas do processo de transformações pelo qual ava o Brasil Império, e especificamente a Província do Grão-Pará, e como responderam a este processo a partir dos usos e práticas das leis que assegurassem a condição social garantida pela alforria almejada para si e seus familiares, e a defesa da noção de propriedade, bem como a manutenção do domínio propiciado pela alforria, por parte do último.

 

Nesta edição de Memória de Santarém, vamos conhecer detalhes da batalha judicial travada por Severiano, escravo do tenente-coronel José Joaquim Pereira Macambira.

 

O professor Rodrigo Caetano de Souza anotou que desde o final da década de 1860, já era possível encontrar essa ação das elites conservadoras de Santarém para conceder alforria aos escravizados. No entanto, o contexto da década de 80 apresentava uma conjuntura distinta; alforriar não se trata somente de um ato particular, mas ganhava dimensão de prova de civilidade.  A modernização aqui exigia posicionamentos, no cenário política no império.

 

E em nome da alforria, a luta por liberdade foi levada aos tribunais, tornando visível a ambiguidade das leis, pois enquanto alguns conseguiram legitimar a alforria por esses meios, outros foram distanciados desse horizonte, e por fim notou-se que a alforria apresentava uma dinâmica de sentidos, usos e aspectos que foram fundamentais como mecanismo de controle por parte dos senhores, bem como horizonte a ser conquistado por parte dos escravos.

 

Pelo valor razoável: a problemática do pecúlio no caso de Severiano

 

(SANTARÉM. Fórum da Cidade de Santarém. Juízo Municipal. Autos de arbitramento para a liberdade do mulato Severiano, escravo do Tenente Coronel José Joaquim Pereira Macambira. 1881.)

 

Esse tipo de alegação, a compra de alforria através do arbitramento judicial, foi o mais utilizado pelos escravos nos processos analisados. No total, foram impetradas 24 ações de liberdade onde os escravos manifestaram o interesse de adquirir sua liberdade através do pagamento de uma indenização ao seu senhor, uma clara consequência do reconhecimento do pecúlio que veio com a lei de 1871.

 

Após as barras dos tribunais servirem de palco para uma série de reviravoltas no caso no qual foram reconhecidos os direitos das libertas Thereza Maria e Anna Maria, era a vez de Severiano lançar mão do recurso, afinal era outra época. Ao contrário das duas libertas, não estava submetido a uma alforria condicional. A base legal recorrida era o auto de arbitramento, uma ferramenta legal nos casos do valor oferecido, ou seja, quando o pecúlio acumulado pelo escravizado não fosse aceito pelo senhor.

 

O auto de arbitramento seguia alguns ritos; o primeiro o era encontrar alguém que pudesse enviar um requerimento, seguido de uma petição solicitando a nomeação de um curado. Uma vez autorizada, o senhor era intimado a aceitar ou não a oferta do pecúlio. Caso este recusasse o valor oferecido, o rito seguia para o próximo o, que era nomear um depositário, pessoa que durante o andamento do processo se responsabilizava pela guarda e segurança do escravo. Posteriormente, os dois lados indicariam arbitradores; da análise destes surgiria um valor, poderiam ocorrer pedidos de vistas do processo, ou seja, caso um dos lados encontrasse irregularidades.

 

Cumprindo os ritos, caberia então ao juiz dispensar sentença conclusiva. Caso a sentença fosse contrária à liberdade, haveria possibilidade de recursos a uma instância superior.

 

Nessa época, os recursos seguiam para Tribunal da Relação da capital.

 

No dia 3 de janeiro de 1881 na cidade de Santarém, o juiz de órfãos recebe o requerimento em nome de Antonio José Auzier. No mesmo dia, o requerente é nomeado curador e pode então seguir representando Severiano na querela. Conforme a petição, Severiano era escravo do tenente-coronel Jose Joaquim Pereira Macambira. Este senhor era oriundo de uma família tradicional e com fortes ligações com os negócios da escravidão.

 

Conforme matrícula, anexada aos autos, Severiano contava com 22 anos na época do processo. Haja vista que foi matriculado com 13 anos no dia 28 de setembro de 1872. O documento caracteriza Severiano como mulato, solteiro, natural de Santarém, filho da escrava Maria, e com pouca aptidão para o trabalho, apesar de indicar a profissão de lavrador. Esses aspectos colocavam Severiano na categoria de escravizado na idade produtiva.

 

Em uma segunda petição, Severiano afirmava requerer ao juiz: Nela Severiano, representado por seu curador, indicava que ele havia depositado o pecúlio no cofre das rendas gerais. Além disso, pôde verificar que o valor de sua avaliação, por parte do senhor, estava muito acima do pecúlio acumulado por ele (1 conto e 500$000 réis pedido pelo senhor e 500$000 réis depositados).

 

Como não houve acordo, foi necessário intimar o comparecimento do tenente- coronel Macambira, e assim ficou registrado o momento em que o escrivão entregou a citação. A intimação chegou até ele no dia 4 de janeiro de 1881. Como de praxe, o receptor respondia estar ciente. Todavia, o coronel não se contentou em tomar conhecimento dos autos e demostrou insatisfação com a ação. O coronel Macambira via problemas no caso de “insistir no mesmo abuso do escravo, para declarar se aceita ou não o valor que este lhe oferece por sua liberdade, a qual declarou que não (...)”. Uma resposta que diz muito sobre o mundo dos senhores na década de 80 do século XIX. Para eles, tal situação representava um turbilhão sem controle e eles não iam tolerar tamanha audácia.

 

O juiz então emitiu um mandado para que o oficial de justiça requeresse ao tenente “que lhe entregue o seu escravo mulato de nome Severiano, o deposito em poder do Capitão Manoel Roque Rodrigues dos Santos” . Seguindo a premissa da lei, uma vez aprovada a audiência de arbitramento, deveria o suplicante ser posto em depósito.

 

Porém, ao ser intimado para cumprir as regras da lei, o tenente Joaquim Macambira se apressou em recusar. Conforme a certidão anexada aos autos, disse que “não entregava, em consequência do dito escravo estar prestando serviços e ninguém fazer-lhe pagamento aos dias em que o escravo estiver depositado e que iam-se assim os seus direitos.”

 

Novamente, a mentalidade dos senhores é acionada no pequeno discurso de recusa. Ao que parece, o coronel Macambira se comportava como um ser acima das leis, sua recusa era uma amostra do desrespeito a lei, uma vez que ela ordena o imediato depósito. Porém sua última afirmação vai além. Para ele, o depósito só se justificaria se fosse ressarcido.

 

Por sinal, a ideia de ressarcimento em torno da propriedade escrava é um elemento primordial narelação entre senhores e estado. Aqui, o direito à liberdade se chocava com o direito de propriedade. Chama a atenção a postura do tribunal. Afinal, por que permitiu que Macambira negasse o depósito? Acredita-se que a resposta esteja no próprio nome. A família Macambira ocupava cargos altos na Santarém oitocentista. Não precisa ir muito longe para identificar o peso dessa família na escravaria santarena.

 

Tratava-se de um sujeito influente. Indicando ter muitas ocupações, o coronel Macambira segue um procedimento padrão nesses casos, nomear um procurador para que o represente na querela. No dia 4 de janeiro de 1881, outorgou esse direito ao advogado João Victor Gonçalves Campos. Esse sujeito era uma figura proeminente nas disputas políticas e judiciais envolvendo senhores de Santarém. Correndo os ritos previstos por lei em caso de arbitramento, seguiu-se a convocação das partes para uma audiência e posterior indicação dos árbitros.

 

Conforme o Decreto nº 5135 de 13 de novembro de 1872, especialmente os Art. 39 e 40, o próximo o seria o arbitramento. A partir da indicação de árbitros de ambas as partes, poderia seguir o rito. Aberta a mesma audiência ao toque de campainha o pregão por mim escrivão, ao oficial de justiça compareceu Jose Joaquim Macambira representado por seu procurador o advogado João Victor Gonçalves Campos, que afirmou que sendo notificado para a audiência nomeou e aprovou os árbitros que dariam valor ao escravo Severiano por sua liberdade se (?). 

 

Não deixa de ser surpreendente o que aconteceu. Pois, ao que tudo indica, o processo de arbitramento ocorreu sem a presença do curador representando Severiano. Além disso, não foram indicados árbitros dessa parte, ou seja, o processo transcorreu de forma unilateral. Ao fim do processo formou-se a mesa arbitradora: Para avaliador escolheu Capitão Manoel José Collares e para desempate o major José Thomaz da Silva solicitou o procurador ao juiz que o rito se concretizasse à revelia do curador, visto ter deixado de comparecer para a louvação. O juiz assina o deferimento, o requereu (?) José Silvestre dos Bastos e aprovou o Major Jose Thomaz (?) para desempate.

 

Após a decisão ficou acertado uma audiência para o dia 7 de janeiro de 1881, às 9 horas, para que os indicados prestassem juramento e houvesse procedimento de arbitramento.

 

Após os juramentos dos árbitros se deu o rito de arbitramento, sem a presença do representante do libertando, o curador Antonio José Auzier. Essa ausência seria determinante para a prevalência do valor maior.

 

Por fim, prevaleceu por desempate, o valor de 1 conto e 500$000 réis 520 , 1 conto acima do pretendido por Severiano e de acordo com o requerido por Macambira.

 

Na sua petição de vistas, Antônio José Auzier, curador do escravo, dizia “que achando-se feito o arbitramento do valor do seu curatelado e que tendo alegações a fazer tanto a respeito do valor do escravo como sobre a nulidade pari u que existem nos autos”. Sendo atendido pelo juiz no mesmo dia, Auzier fez uma longa exposição dos fatos e leis imbricados na ação.

 

Considerando aqui os dados arrolados por Luiz Carlos Laurindo Junior para a média dos escravos vendidos no Vale do Amazonas, o escravo com a profissão de lavrador era avaliado em 760$392. Portanto, o valor arbitrado por Severiano estava 739$608 réis acima do preço médio cobrado por alguém com os aspectos dele.

 

Auzier apresenta uma leitura, até então, não vista na documentação anexada, pelo menos no que tange à matrícula. Ele afirma que Severiano não tinha “nenhuma habilidade, nem profissão, (...) a pouca aptidão ao trabalho”. Na matrícula ele é mencionado com a profissão de lavrador, porém realmente menciona a não aptidão ao trabalho de Severiano. No entanto, a segunda evidência é mais robusta: trata-se da escritura de venda que avaliou o preço de Severiano em 1 conto e 17$000 réis, ou seja, 483$000 réis abaixo do valor arbitrado. Este é um instrumento forte de questionamento no processo.

 

Diante das argumentações de Auzier, restava à parte que representava Jose Joaquim Pereira Macambira desqualificar o pecúlio.

 

O advogado de Macambira enumerou nesse relato uma série de supostas irregularidades, como o fato de o pecúlio não ter ado primeiro pela mão do senhor e ter sido adquirido de forma ilícita. Conforme o procurador, foi Manoel Roque que deu fuga a Severiano.

 

Victor Campos sugere em outro momento que Manuel Roque perseguia o coronel Macambira. Para ele, o depositário Manuel Roque “se tem i nsistido em ser inimigo gratuito e procura intentar todos os meios reprováveis para molestar e desrespeitar seu sogro, o pai de sua mulher a quem deve obediência e respeito de filho para com o pai”. O procurador sugere também uma possível premeditação do fato, por parte de Manuel Roque e Severiano. O argumento principal era de que o pecúlio acumulado por Severiano se devia a meios ilícitos, que o procurador de Macambira não se esforça minimamente em demostrar. Ao que parece, a argumentação apresentada pelo procurador convenceu o juiz, que, ao emitir suas conclusões, reconhecia que o pecúlio adquirido por Severiano não era legal, “sendo antes sinal da liberalidade de terceiros, em afronta a sua pessoa, (?) não pode ser acumulado sem ciência do Senhor.” 

 

Nenhuma prova contundente fora anexada ao processo. Porém, assim se encerrou o processo no tribunal de Santarém. Como se viu, o tenente-coronel José Joaquim Pereira Macambira podia contar com uma rede de apoio, começando pelo juiz, ando pelo advogado e alcançando os arbitradores, ou seja, pessoas capazes e com poder para certificar as ações dele.

 

A história não acabou aqui. Como previsto em lei, caso a sentença fosse contrária à liberdade, ela deveria seguir para instâncias superiores, e foi o que aconteceu. O caso de Severiano, conforme se percebe no recibo que fecha o processo, seguiu para o Tribunal da Relação de Belém.

 

Conforme apurado a partir dos jornais, no Tribunal da Relação de Belém a sentença se manteve. Houve alguns embargos, em que o embargante era nomeado como “o libertando Severiano” , o que dá a entender sua nova condição. Essa condição era ambígua, o que fez Auzier recorrer ao Império. No fim das contas, Severiano teve sua condição jurídica de liberto reconhecida, como se pode notar no pequeno aviso publicado no jornal O Liberal do Pará em 11 de agosto de 1886:

 

De José Joaquim Pereira Macambira, residente em Santarém, pedindo providência no sentido de que a tesouraria da fazenda ordene ao coletor respectivo de Santarém que entregue ao juiz da execução do acórdão da Relação, concernente à libertação do escravo do suplicante de nome Severiano, a quantia destinada para a libertação do mesmo escravo. Informe com urgência à tesouraria da fazenda.

 

Nessas alforrias, que, por sua natureza, eram chamadas de alforrias forçadas, pois ocorriam à revelia da vontade do senhor, na queda de braço entre senhores e estado, em alguns momentos os senhores perdiam. Notadamente, esta perspectiva não se aplicou em sua totalidade ao tenente-coronel José Joaquim Pereira Macambira, haja vista ter possivelmente recebido algum valor. Todavia, vale notar que Severiano conseguiu assumir uma nova condição jurídica. Enquanto o processo seguia, era um libertando e, além disso, continuou alargando sua condição, até a plena alforria.

 

( continua na próxima edição)




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