As revoltas de Haroldo Veloso, o herói da Aeronáutica que atuou em Santarém 16w68
No dia 11 de fevereiro de 1956 o major Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão se apossaram de um avião Beechcratf de pequeno porte da FAB no Rio de Janeiro e o levaram para a base de Cachimbo, no Pará, aberta pouco antes pelo próprio Veloso para servir de apoio aos longos voos entre a capital federal e Manaus.
Dali eles pretendiam desencadear um movimento armado para impedir a continuação do governo do presidente Juscelino Kubitscheck, que tomara posse em 31 de janeiro. Estavam, confiantes na influência de Veloso na Aeronáutica, onde era considerado um exemplo, um autêntico herói. Mas a “revolta de Jacareacanga”, como ficou conhecida, fracassou. ados 60 anos, até a memória do fato se desfez. Ninguém lembrou a data.
Mas ela é importante. Veloso, que cursou a escola de Realengo, se formando como engenheiro aeronáutico, repetiria o ato três anos depois, em Aragarças, com o mesmo desfecho. Ele e muitos outros na força aerea representavam o eco da pregação antidemocrática da União Democrática Nacional, um dos partidos que surgiu com o fim do Estado Novo e a volta do Brasil à democracia, em 1945.
A UDN foi organizada como porta-voz do liberalismo renovador. No seu ventre até se formou uma ala esquerda, chamada de Bossa Nova (da qual participaram o maranhense José Sarney e o paraense Clóvis Ferro Costa), que tentou arejar – sem conseguir – o comando do partido, dominado por uma elite autocrática e golpista.
Apresentando-se como a encarnação da moral e da ética política, afinada com as classes médias urbanas, a UDN acumulou derrotas na busca sôfrega pelo poder. Seu lema de guerra foi cunhado pelo seu maior líder, Carlos Lacerda. Quando Getúlio Vargas venceu a eleição de 1950, recebendo a aprovação popular pelo voto, depois de ter sido ditador, Lacerda não se conteve. Garantiu que Vargas, se fosse eleito, não tomaria posse no cargo. Se tomasse, não governaria. Se governasse, seria deposto.
O presidente ficou acuado quando o próprio Lacerda, num episodio ainda obscuro, foi baleado por capangas de Gregório Fortunato, o chefe da milícia privada ou guarda pretoriana de Getúlio. Morreu no atentado Florentino Vaz, outro major da Aeronáutica, a arma que mantinha oficiais em revezamento constante como seguranças particulares de Lacerda.
A partir do escândalo, surgiu um poder paralelo ao oficial, que se intitulou “república do Galeão”, por tomar a base aérea do Rio de Janeiro como quartel-general. Sem alternativa além da deposição e desonra, o presidente deu um audacioso e definitivo golpe de mestre nos adversários: se suicidou, em 1954. Inverteu as posições da disputa, mas não por muito tempo.
O ministro da guerra, marechal Henrique Teixeira Lott, precisou recorrer a um golpe preventivo para garantir a sucessão constitucional de Vargas, que daria a vitória ao candidato mais forte: o governador mineiro Juscelino Kubitscheck. JK era o herdeiro de Vargas, que fez a sua última viagem justamente a Minas Gerais, recebendo uma calorosa recepção quando era hostilizado pela maioria dos políticos e do povo em geral.
Com a revolta iniciada na base do Cachimbo e estendida, ao longo de duas semanas, a Santarém e Jacareacanga (que ainda não se emancipara de Itaituba), Haroldo Coimbra Veloso, promovido a major em 1951, por ironia, no governo de Getúlio, esperava dar o toque de reunir para os conspiradores saírem dos seus esconderijos e brecarem a posse de JK. Mas logo o governo o isolou e o prendeu, numa operação que deixou um único morto: o santareno José Barbosa, mais conhecido por Cazuza, que era aspirante no Tiro de Guerra. Ele tentou reagir à chegada da tropa legalista que o acuou e foi metralhado. Ao ser localizado no meio da mata, Veloso se rendeu. E foi anistiado por Juscelino logo no dia seguinte à sua prisão (como todos os golpistas a partir de 11 de novembro do ano anterior), que repetiria o gesto de generosidade e esperteza quando o militar bisou a dose, em 1959.
Os udenistas estavam certos de que o brigadeiro Eduardo Gomes, outro herói da Aeronáutica, brecaria a volta de Vargas ao poder. A derrota do seu candidato alimentou o rancor de quem se sentiu injustiçado por não conseguir aquilo que é essencial numa democracia: a preferência do eleitor. Para chegar à presidência da república, a UDN teve que aceitar um candidato externo e indomável, o governador de São Paulo, Jânio Quadros, que se notabilizara – dentre outras imagens e recursos – por se opor aos partidos políticos. Ele venceu na convenção um político legitimamente udenista (com a desejada origem militar), o baiano Juracy Magalhães, que fora “tenente” (ou seja, adepto da modernização do país pelo despotismo castrense esclarecido exercido pela sua elite).
A decepção veio novamente com a renúncia de Jânio, seis meses depois de assumir com a maior votação da história brasileira pela presidência da república. Um dos pretextos para o ato surpreendente foi a pressão que sobre ele exercia ninguém menos do que Carlos Lacerda, só em tese seu correligionário. O governador da então Guanabara acusara JQ de tramar um golpe branco, para se apossar do poder integral. Jânio realizou a profecia, embora de modo que Lacerda nem cogitara, e se deu mal.
A nova revolta de Veloso, agora no sertão goiano, era para interromper logo a trajetória democrática do país, antes que os herdeiros de Vargas se sucedessem: Juscelino dando continuidade ao desenvolvimentismo, ainda que substituindo o nacionalismo de Getúlio pela aliança com multinacionais, e Jânio pela manutenção do populismo aberto, o que causava horror aos udenistas.
Ironicamente, quando, enfim, os quartéis triunfaram, depondo o mais getulista dos sucessores de Vargas, o também gaúcho João Goulart, Veloso pediu para ar para a reserva, ascendendo ao posto de brigadeiro. Mais surpreendentemente ainda, se apresentou como candidato do partido do regime militar, a Arena, e se elegeu deputado federal pelo Pará, em 1966, com 12.156 votos. Depois de conspirar e agredir a democracia, ele se resignava a trilhar pelo caminho político, apesar das pedras fincadas por seus companheiros de armas.
A decisão deve ter sido meditada. Oficiais da Aeronáutica com os quais Veloso se identificava partiram para o terrorismo de direita, recorrendo cada vez mais a atos de violência para impedir a volta dos militares aos quartéis e o restabelecimento da ordem legal plena, que ainda parecia viável no governo de Castelo Branco, o primeiro general-presidente. O novo líder dessa facção seria o brigadeiro João Paulo Burnier, cujo paroxismo foi o lançamento de subversivos ao mar, de avião, e o planejamento da explosão do gasômetro do Rio de Janeiro.
Outra ironia do destino foi quando, as linhas da vida de Veloso se cruzaram com o político da oposição mais bem sucedido na eleição de 1966: o ex-deputado estadual Elias Pinto, eleito pelo MDB (atual PMDB) prefeito de Santarém, que era o segundo município mais populoso e importante do Pará.
Num comício em Santarém, já ao lado daquele que devia ser seu adversário, Veloso denunciou a existência de uma nova trama para impedir a vitória de Elias, vítima de fraudes na votação e na apuração dos votos em duas tentativas anteriores de chegar à prefeitura. O emedebista acabaria obtendo dois terços dos votos válidos, um resultado que o governador (e tenente-coronel da reserva do exército), Alacid Nunes, detestou. Seria prova de desprestígio e de inferioridade em relação àquele que fora decisivo para sua eleição no ano anterior, o senador Jarbas arinho, de quem já começava a se distanciar.
A máxima golpista da UDN comandou a reação do governador à presença de um oposicionista em cargo político tão importante. De manobra em manobra, ele chegou ao máximo: impedir, com tropa armada, a volta de Elias à prefeitura, da qual fora afastado pela maioria arenista na câmara municipal. Veloso comandava a eata que iria levar o prefeito à sede do poder local e que foi recebida a bala. Três pessoas morreram e Veloso foi ferido. Morreu um ano depois, em outubro de 1969, aos 46 anos, de complicações decorrentes do grave ferimento que sofreu. Por mais uma ironia, o suplente, Epílogo de Campos, não pôde assumir. Fora cassado pelo governo militar.
Conversei algumas vezes com Haroldo Veloso, antes e depois da eata de setembro de 1968, três meses antes da instauração da ditadura plena pelo AI-5, no fatídico 13 de dezembro de 1968, quando as luzes do Brasil foram apagadas e as trevas se estabeleceram. Dentro dele habitava o militar impetuoso, que não ava o ritmo pausado da democracia. Afora isso, sua aparência inicialmente hostil se desfazia quando confiava no interlocutor. E se abria quando em operação de campo, o que mais gostava de fazer.
Depois de ferido, no corpo e na alma, e em função da longa hospitalização, ele se tornara agressivo. Uma vez garantiu que voltaria a Belém para acertar as contas com Alacid Nunes, a quem responsabilizava pela violência usada pela Polícia Militar contra os manifestantes e ele, em particular. Foi mais um projeto que não realizou.