Choro por ti, Belterra! Capítulo quinze l6f2y
Deixei o carro rodar uns duzentos metros e quando vi que estrada ia se afinando como a outra que nos trouxera até ali e a alma começava a ficar apertada, resolvi procurar outro caminho. E então aconteceu algo que nos deixou muito tristes: ao ar frente à porta do casal que com tanta emoção nos recebera, nossos olhares se cruzaram com os deles, mas, talvez por que estivessem concentrados em receber a preciosa água trazida pelo carro-pipa, olharam para nós mas foi como se nunca nos tivessem visto.
Procurando encurtar o desgosto que vi no rosto de papai, pressionei mais forte o acelerador e enveredei por uma estrada – que depois soubemos ser a Estrada 06 – de solo avermelhado e arenoso, comprida a perder de vista, e deserta, completamente deserta.
Tal estrada, entretanto, distinguia-se das demais: de um lado e do outro enxerguei algo como a alma de uma capoeira que outrora existira no lugar, baixa e rala, que crescera depois de terem derrubado a mata nativa ou as antigas seringueiras, a qual, por sua vez, dera lugar a uma longa faixa de terra descampada, coberta levemente por uma verdejante plantação de milho ou algo parecido, não sabendo ao certo do que se tratava.
“Sim, as árvores têm alma”, pensei.
Diminuí a marcha do carro e, investigando de soslaio o rosto de papai, enxerguei nele as sombras de uma grande decepção. Certamente, imaginei eu, a aparente frieza daquele casal, que nos tratara com tamanha distinção e, minutos depois, olhara-nos como se jamais nos tivesse visto, seria a causa da decepção que eu julgava ver no rosto de papai.
Mas logo descobri que havia outra causa.
– Cadê as seringueiras que os americanos plantaram aqui? – murmurou papai, como se falasse consigo mesmo.
– Faz muito tempo, 80 anos! Muita coisa aconteceu de lá até agora; os americanos se foram e ondas de gente, de todas as origens e lugares, aram por aqui sem conseguir se fixar – arrisquei dizer, receoso de interromper os pensamentos de papai, mas este, ao ouvir a minha voz, de um modo surpreendente desandou a falar, e contou-me coisas que eu não conhecia e julgava que ele também não soubesse – pois papai foi aluno de uma escola regular por um único dia, o fatídico dia em que, com a conivência do professor, viu-se surrado por outro menino. Na vida dura que lhe restou, como cortador de juta nas margens alagadas do rio Amazonas, ou nas andanças por mil trilhas em busca de produtos da selva como o caucho, o jutaí-cica, a sorva, o cumaru, ou nas inumeráveis casas que ajudou a construir ou construiu, como pedreiro que, por esforço próprio, chegou a “mestre-de-obra”, tendo unicamente a vida como professora, aprendeu a decifrar as letras e a garatujar seu nome sozinho.
– Parece que estou vendo, filho, as longas fileiras de seringueiras já crescidas, quando aqui cheguei, ainda menino – foi falando papai, com o olhar perdido na plantação que se estendia à nossa vista, nas duas margens da estrada. E continuou:
– Dava gosto ver as fileiras a perder de vista, um metro entre uma e outra, se afunilando lá longe, até onde a vista alcançava, sem nunca se encontrarem, e, quanto mais a gente se enfiava entre as fileiras, mais estas iam seguindo, seguindo, sem jamais se cruzarem, e avam pro outro lado da estrada e assim seguiam como irmãs gêmeas, juntas e amigas, conversando uma com a outra, de dia e de noite, sem jamais se atrapalharem; dava gosto andar entre elas.
A fim de não atrapalhar o devaneio de papai, parei suavemente o carro, tão suavemente que ele nem percebeu que havíamos parado, e, metido tão fundo entre as fileiras das seringueiras da sua infância, continuou falando:
– Os americanos chegaram a Belterra em 1934, a grande guerra ainda não havia estourado, mas os americanos, com o seu olho de águia, sabiam que era apenas uma questão de tempo e o mundo seria incendiado; os seringais ingleses na Malásia, que supriam a indústria de pneus, já haviam caído sob o poder dos japoneses, por isso eles vieram para a Amazônia, pois achavam que na Amazônia, por ter clima quente e úmido como na Malásia, daria certo plantar seringueiras. Chegaram e foram logo derrubando a mata, que aqui ainda era virgem, nunca tinha sido cortada, pois os índios e os caboclos, moradores da terra, só cortavam árvores na beira dos rios, onde moravam. Cheguei a Belterra em 1944, fedelho de tudo, 11 pra 12 anos; as seringueiras, plantadas dez anos antes, já estavam bem crescidinhas. Em abril de 1934 tomou posse o diretor da Companhia Ford Industrial, com sede em Belterra, e a cidade então começou a ser construída. Contrataram os “auxiliares rurais”, como eram chamados os seringueiros, que tinham carteiras de trabalho e recebiam placas de identificação conforme sua função; até eu, trabalhando na horta, recebi o meu crachá. E começaram o desmatamento para a abertura de estradas, vilas e plantações de seringueiras. Nas áreas desmatadas, construíram casas para os empregados casados e alojamentos para os solteiros, clubes, hospital, escola e até campo de futebol, tudo planejado, como nunca se vira; do dia para a noite surgiu uma cidade no meio das seringueiras, que foram divididas em quadras, cortadas pelas estradas: no eixo leste-oeste eram os números ímpares e no eixo norte-sul, os pares; cada quadra media 400 metros de largura, uma beleza, dava gosto de a gente ver, um verdadeiro prodígio.
Papai parou de falar e assim ficou por alguns minutos, como que engolido por seus pensamentos. Pus o carro em movimento e seguimos, lentamente, pela estrada margeada por milharais ou coisa que o valha. A já conhecida melancolia parecia ter tolhido a fala de papai. De repente, como que saindo de um turbilhão de lembranças intraduzíveis, papai voltou a falar, mas, agora, se via um friso irônico no canto de sua boca; sua voz saiu um pouco rouca:
– Os sacanas dos americanos pensaram que era só derrubar a mata a torto e a direito e ir plantando as suas lucrativas seringueiras, com a mão de obra barata, quase escrava, do caboclo amazônico. Em 1937, meu filho, cerca de 3 milhões e 200 mil seringueiras tinham sido plantadas! Imagina o estrago que isso fez na floresta. Foram queimados aproximadamente 2 mil e 600 acres para plantio de seringueiras, em 1934. Coitada da floresta, que vivia quietinha no seu lugar e se renovava sozinha, sem nunca ser molestada, e, de repente, chegam os americanos, os bacanas, com suas luvas-de-pelica mas trazendo tratores e motosserras, e pam os caboclos pra cortar mato e plantar seringueiras. No começo, tudo parecia ir muito bem; no húmus fértil resultante das queimadas cresciam rapidamente as mudinhas: um, dois, três, quatro metros de altura, de um mês para outro, uma beleza! A nova cidade florescia junto com as seringueiras. Em 1939, quando a guerra já infernizava o mundo, os americanos construíram o hospital Henry Ford, onde se tornou famoso o até hoje lembrado “Dr. Gilett”. No mesmo ano, construíram a escola, também chamada de Henry Ford e que hoje se chama Valdemar Maués, onde, como sabes, eu tive o primeiro e único dia de aula em minha vida.
Mas o que restou desses milhares de seringueiras? Onde estão elas? Para onde foi a riqueza que elas geraram em uma década de permanência dos americanos em Belterra? Eu fazia essas perguntas a mim mesmo, ali, naquela estrada perdida e deserta, sem ver a presença de alma vivente alguma a não ser a de meu pai, que, naquele instante, ao meu lado, devia também estar se fazendo muitas perguntas, igualmente sem respostas. E onde foram os milhares de pessoas que viveram em Belterra na época dos americanos e para aí vieram sonhando com o progresso pessoal e a integração à vida de um país que sempre parecera distante e inalcançável para essa pobre gente que ainda hoje vive entocada no oco da selva ou nas margens e cabeceiras dos rios e igarapés da Amazônia? Eu olhava para as margens descampadas da estrada e, até onde a vista alcançava, não via ninguém, nenhuma alma vivente, nada, mas, para uma criatura como eu, capaz de entretecer longas conversas consigo mesmo, era possível enxergar as sombras e vultos que deambulavam como que sonâmbulas sobre o milharal ou no cruzamento dos caminhos, como se ainda tivessem um destino a cumprir. Um desses vultos fitou-nos com olhos ao um tempo intensos e vítreos, que me fizeram pisar mais forte no acelerador.
– É a morte, filho, é a morte que vive neste lugar – sussurrou papai. – Nada aqui é real. As pessoas com quem conversamos não são pessoas mas mesuras de gente animadas pelos espíritos maus que impedem o progresso desse lugar. Pior de todas são as que parecem boazinhas; estas são como o cachorrão que ri para o osso que em seguida irá morder. Mas a nem estas devemos temer, pois são irreais. Seus corpos foram plantados entre as fileiras de seringueiras mas estas não existem mais, o seu leite mal retirado pelos maus seringueiros secou e as árvores morreram ou foram incendiadas de propósito pelos que aqui ficaram; expulsos pelas pragas que roíam a folhagem das árvores e pela sabotagem do próprio caboclo, que resistia à disciplina dos americanos e não media esforços para emperrar a produção do leite da seringa, os gringos acabaram indo embora e lá na terra deles morreram, de velhos ou na guerra, mas seus filhos e os filhos dos seus filhos continuam plantando a desgraça pelo mundo. Vês como o sol está no céu enorme e amarelo? Sentes o seu calor opressivo. Vês como o mundo se aquece e parece ir se fechando dentro de nós? Será que não estamos dentro de um dia que jamais acontecerá? – perguntou-me papai com olhos imensamente tristes.
Só então, vendo o estranho sol em forma de avermelhada laranja, maior que o de costume e que declinava a três palmos sobre a linha do horizonte, lá onde as plantações de milho ou seja lá o que fosse pareciam findar, dei-me conta de que o dia já ia descambando para o seu fim e ainda precisávamos chegar à mítica Estrada Um.
E então, pressionando um pouco mais o acelerador e sem olhar para trás ou para os lados, esquecendo das poucas criaturas que até aí encontramos pelos caminhos, concentrei-me na esperança de que na Estrada Um tudo se modificaria, fora e dentro de nós.
(Continua no próximo capítulo)
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