Choro por ti, Belterra ! Capítulo quatorze 3c62x
Revendo as fotos que tirei daquele episódio, impressiona-me que, sendo eu e papai completamente desconhecidos do casal e este de nós, tenha se estabelecido uma tal intimidade entre nós que, apenas cinco minutos depois de nossa chegada, já nos víamos com nossos anfitriões atrás do casebre conversando animadamente e trocando confidências, como se há muito nos conhecêssemos.
Com a mania que tenho de sonhar com textos que ainda não foram escritos e enxergar coisas invisíveis, enquanto papai ia conversando com o homem eu escutava o seguinte diálogo, lido sabe-se lá em qual dos livros que subsistem comigo depois de tantas mudanças:
“Amigo, não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Tinha todos os sonhos do mundo, mas falhei em tudo”.
“Eu também, amigo. Fui ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores. Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!”
“É, amigo. O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão”.
“Compreendo, amigo, o que você diz: Serei sempre o que não nasceu para isso. Serei sempre só o que tinha qualidades. Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta. Mas ao menos ficará da amargura que nunca seremos a caligrafia rápida desse nosso encontro”.
Não saberei descrever o que meu pai e aquele homem, que saltou de uma encruzilhada e entrou em nossas vidas, conversaram, nesses dois ou três minutos em que meu pensamento divagou por esfumaçadas lembranças recolhidas nas páginas de velhos e já carunchentos livros que há anos me acompanham; livros que fazem parte da minha intimidade mais do que a maior parte dos parentes e “amigos”.
Ao despertar do devaneio, vi que o homem chorava e papai, com os olhos marejados, escutava-o atentamente.
“Pois é, amigo. Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invoco a mim mesmo e não encontro nada”, dizia o homem, interrompido por um soluço. Mas, tomando fôlego, continuou: “Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade, mas sou o maior dos mentirosos. A única verdade que reconheço é que menti para mim mesmo desde que nasci. A minha única lucidez é reconhecer isso. Mas o que adianta reconhecer agora. Tudo ou, ficou para trás, se perdeu. Restou-me esta mulher e este lugar onde só os fantasmas e os que estão em busca de coisa nenhuma, como vocês dois, encontram”.
“Não seja tão severo consigo, amigo. Quem não foi enganado ou enganou-se a si mesmo neste mundo?”, consolou-o papai.
“O diabo é saber disso e não se emendar de seu erro”, disse o homem. E deu início a uma história que eu ouvi como se estivéssemos fora do tempo. A carência daquele homem era tanta, a sua solidão tão tremenda, que ele escancarou o seu coração para meu pai como quem abre o porão dos segredos ao seu próprio fantasma.
“Rodei mundo, trabalhei em muitas coisas, negociei, amei muitas mulheres, casei, descasei, perdi tudo e larguei-me de novo pelo mundo, até cair aqui com esta mulher, que me tem aguentado”, começou o homem.
Exatamente como chegara ao Pará, quinze anos atrás, vindo do Ceará, onde nascera, nunca saberíamos. O que o homem estava sedento para nos contar era por que largara tudo para trás – casa, terras, parentes, o lugar de suas tenras lembranças – e viera para um lugar como Belterra. Mas, como em todo destino, é refazendo os os da ida que melhor compreendemos o retorno.
“Há quinze anos me escondia aqui com esta mulher e tentava esquecer o ado. Toda tarde dizia para mim mesmo: Esta noite não sonharei com meus filhos nem me maldirei pelo que fiz ou deixei de fazer à mãe deles. Mas, de manhã, lembrava dos sonhos da noite, ou melhor, dos pesadelos, que esta mulher bem conhece. E nas noites seguintes os pesadelos voltavam. Mas me julgava liberto da realidade. Não cria que alguém real, que conhecesse o meu ado, um dia fosse descobrir o meu esconderijo”.
Até que um dia, ou melhor, um começo de noite, os pássaros noturnos já esvoaçando sobre as árvores do quintal, ouviram palmas e alguém chamando “Ei de casa!”.
“Era o meu filho caçula, que larguei no colo da mãe quando saí de casa. Eu não sabia quem era, até tive medo, pois quem se atreveria a andar, àquela hora, por estas estradas desertas, onde só os fantasmas caminham? ‘Aqui é a casa do Sr. Fulano?’, perguntou o rapaz, que logo vi tinha a minha cara. ‘Não!’, disse eu, espantado com tamanha semelhança. Certamente, o jovem também se reconheceu em meu rosto, pois, indo direto ao que lhe trouxera, afirmou: ‘Pai, não tenha medo ou receio. Vim em paz. Quero apenas lhe conhecer e dar-lhe um abraço’. E então nos abraçamos e choramos. Abraçado ao rapaz como se fosse comigo mesmo, sentia-me renascer, mas, no mesmo instante, preferia morrer, de remorso e vergonha. Aquele rapaz, com o seu abraço, o seu pranto de criança, esbofeteava-me. A mulher, ao nosso lado, via tudo, mas nada dizia. Foi sempre assim: amiga, paciente, carinhosa e calada, aceita a mim e o meu ado como aceita esses gatos que vieram sabe-se lá de onde e foram ficando, ficando...”
Depois de três dias, já sem saber o que fazer com aquele ‘fantasma’ que se levantara das tumbas da memória, o homem escutou o jovem dizer-lhe: “Pai, quero que vá comigo até o Ceará, onde os outros teus filhos querem festejar o teu próximo aniversário”.
De pronto, o homem disse que não. Não poderia ir sem levar a mulher, mas jamais poderia ir ao lugar onde os filhos e a mãe destes poderiam aborrecê-la. “Vai, marido. Fico aqui te esperando”, disse então a mulher, adivinhando os seus pensamentos.
“Pois esta mulher, amigo, adivinha os meus pensamentos”, disse o homem, alisando carinhosamente a mão da mulher.
E então, já no dia seguinte, pai e filho partiram para o Ceará, onde os sete outros filhos o aguardavam e ofereceram-lhe uma festa como jamais alguém lhe ofertou.
“Amigo, eu sou crente, evangélico, há anos não colocava uma gota de álcool na boca, mas, naquela noite, vendo a alegria dos meus filhos, não tive forças para dizer não, quando o meu caçula me ofereceu uma taça de vinho. Na verdade, naquela noite, bebi tanto, de alegria, de vergonha, de tristeza, de saudade do ado que eu estraguei, da mulher que eu havia deixado em Belterra sozinha, neste ermo, tão amiga e fiel, que precisaram me carregar para a cama, de tão chapado que fiquei. Meu Deus! Que vergonha! No outro dia, lembrando a minha fraqueza na noite anterior, pedi perdão a Deus pelo mau testemunho e despedi-me de todos com lágrima nos olhos, mas o coração aliviado, e desde então durmo tranquilo, sem os pesadelos”.
Em seguida, foi a vez de papai falar do seu ado e dos anos que, na infância, viveu em Belterra. Animado pelas confidências do nosso anfitrião, derramou-se diante daquele estranho como se o conhecesse há séculos.
Com um bastão (e a voz cheia de emoção) papai foi desenhando no chão a geografia dos anos que viveu em Belterra. Ali, num fundo de quintal perdido numa estrada qualquer da esquecida Belterra, papai deixou pedaços de sua vida gravados na memória daquele solitário casal e na retina dos gatos que, perto de nós, participaram do momento sem jamais serem notados.
“Pois é, amigo. Parece que temos algo em comum”, observou o homem, depois que papai cessou de falar. “Fizemos de nós o que não soubemos, e o que podíamos fazer de nós não o fizemos. Rondamos o mundo e agora nos encontramos aqui. Você procurando pelo que não existe mais, a Belterra da sua infância. E eu vigiando uma estrada por onde ninguém mais a ou ará”.
E o homem contou que era seu dever todo dia acordar cedo e, depois do desjejum, ficar vigiando aquela estrada deserta, tomada pelo capim, e, mesmo sabendo que há anos ninguém ava por ela, torcer para que alguma alma vivente surgisse lá onde o mato ficava mais ralo e ainda se via vestígios da estrada.
– Mas por que o senhor vigia a estrada se ninguém mais a por ela? – perguntei.
– Por que me mandaram vigiar – respondeu o homem.
– Quem lhe mandou vigiar? – prossegui.
O homem não respondeu; ficou olhando a estrada fantasma como quem olha pro nada e murmurou esta única palavra: “Ele”.
Ele quem? Eu queria saber, mas o homem nada acrescentou, apenas disse que tinha saudade do tempo em que utilizavam a estrada e ele tinha que ficar de olho em quem ava por ela. “ava ou pousava”, acrescentou.
– Pousava? – perguntei.
– Sim, pois também servia de aeroporto, mas não serve mais.
Nessa época, o seu trabalho tinha importância, todo avião que pousava era revistado por ele, só então os tripulantes podiam deixar o avião, até o dia em que uns caras mal-encarados pousaram e já vieram lhe dizendo: “Cai fora, caboclo! Temos autorização para pousar e não sermos incomodados”. Ele ainda tentou vistoriar, mas os caras o empurraram contra as hélices do avião e ameaçaram estraçalhar com ele se se metesse a besta. Então saiu correndo para casa e os caras ainda ficaram na pista uns dez minuto e depois levantaram voo sabe lá pra onde, mas o homem ainda pôde ver, debaixo dos assentos do avião, pacotes de maconha e cocaína.
No dia seguinte, logo cedo, correu para a Estrada Um e procurou o prefeito de Belterra, o mesmo que o havia contratado para vigiar a estrada, cujo nome não quis nos dizer, mas este, para sua decepção, depois de ouvir o que lhe ocorrera no dia anterior, falou-lhe:
“Amigo, deixe de besteira. Continue vigiando a estrada, mas faça vistas grossas aos aviões estranhos que lá pousarem. Pra que criar caso com essa gente?”
“Eu gostava de vigiar, mas, desde aquele dia, dei graças a Deus porque a Prefeitura abandonou a estrada e nada mais pousou ou ou por lá”, disse o homem, com tristeza no olhar.
Mas, apesar da inutilidade de sua função, pois ava dias sem ver viv’alma, não podia deixar aquele lugar; vigiar a estrada fantasma era o seu sustento.
Além do isolamento e da solidão em que viviam, a mulher disse que enfrentavam outro problema: faltava de água, até para beber, daí as vasilhas dispostas no terreiro à espera da chuva.
A magia do encontro com aquele casal foi quebrada quando um caminhão-pipa, fazendo um barulho dos diabos, chegou com a tão preciosa água. Por um instante, vimos a alegria, ainda que ageira, abrir-se no engelhado rosto da senhora.
Sentindo que o nosso tempo se esgotara naquela casa, entramos no carro e pusemo-nos novamente a caminho, pegando a Estrada Nove, à direita, conforme nos dissera o homem. Nem insistimos na despedida, pois percebemos que o casal se voltara completamente para a água que estava na barriga do caminhão-pipa, como se o nosso encontro já fizesse parte de um ado por demais remoto.
(Continua no próximo capítulo)
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