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Choro por ti, Belterra! ( Capítulo onze ) 4z714y

Nicodemos Sena - 03/03/2015

 

 

 

Debaixo de um sol a pino, vendo apenas a estrada deserta à nossa frente, eu já não conseguia “pensar em nada” – e pensar em nada “é ter a alma própria e inteira”, segundo versos de Fernando Pessoa.

 

Tudo parecia calmo e sereno, como se eu e papai tivéssemos chegado ao “centro do mundo”, àquele lugar mítico onde o Ser se encontra consigo mesmo e onde já tanto faz ser ou não ser, estar ou não estar, pois, lá, todos os livros e todos os sangues se misturam e não importa se estamos em Macondo de Gabriel García Márquez ou em Comala de Juan Rulfo ou em Yoknapatawpha de William Faulkner ou mesmo em Belterra de meu pai Bernardino de Sena. Apenas, a unir todos esses lugares, essa sensação de que tudo isso nos pesa como uma condenação ao degredo, e tudo isto é estrangeiro, como tudo.

 

Fazia um grande barulho ao contrário. Dava-me uma tendência do choro para a desolação. E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim... Lembrei outros versos de Pessoa: “Sou nada... Sou uma ficção... Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?”.

 

Mesmo sabendo quão inútil seria o gesto, bati uma foto procurando captar a alma daquele instante: papai em pé, apontando para coisa nenhuma, apenas ele e a sua sombra, cercado pelo desértico silêncio que nos envolvia desde que entramos em Belterra. (Foto abaixo).

 

 

 

 Papai e sua sombra.

 

 

 

 

Meio dia, estrada de terra, folhudas árvores às margens, e, apesar disso, nenhuma folha sobre o chão da estrada. Num dos lados, ao fundo, tijolos para construção caprichosamente amontoados, a denunciarem presença humana. Mas, cadê o povo, cadê os moradores das casinhas de madeira cobertas de telha de amianto? Mais de uma vez pensei que poderíamos até entrar numa daquelas casinhas e comer o que encontrássemos na cozinha ou mesmo tirar uma soneca lá dentro, sem que ninguém viesse interromper o nosso sossego. Mas uma aragenzinha fria e malévola, que ava por nós e enchia-me de um temor reverencial por tudo o que estava à nossa volta, como se fôssemos objeto de observação de mil olhos que se ocultavam em todos os lugares da Vila Bode, impedia-nos de devassar aqueles recessos.

 

Durante todos esses instantes, eu e papai permanecemos calados, como que temendo quebrar o encanto de tudo aquilo; apenas com nossos olhos nos comunicávamos.

 

Eis que, de repente, quando já chegávamos ao fim da Vila Bode, surgiu, como que do nada, um homem ou algo parecido com um homem, pois – depois de uma hora circulando pelas estradas da Vila Bode, sem ver gente humana – ou pelas nossas cabeças que podíamos estar diante de uma miragem de gente ou mesmo uma assombração enviada pelo capeta para nos afastar da Vila.

 

 

 

O homem-criatura da Vila Bode 

 

 

 

Talvez também desconfiando de que o que via não era humano – ou por outro motivo que instantes depois saberíamos –, o homem ia ando sem levantar o rosto ou desviar o olhar para nós. Estávamos a pé, pois deixáramos o carro lá atrás, perto da velha escola abandonada, o que talvez soasse estranho à criatura que ava por nós.

 

– O senhor mora aqui? – perguntou papai, com uma voz diferente da sua.

 

O homem parece que não ouviu, pois continuou pedalando e já ia se afastando de nós, mas, de repente, parou, e, firmando-se sobre o guidão da bicicleta, mas sem torcer o pescoço para trás, respondeu, com uma voz que se parecia mais com um sopro no buraco de uma cabaça:

 

– Moro, mas não sou daqui.

 

Falou e continuou de costas para nós, de modo que só lhe víamos a nuca, sem cabeço.

 

– Cadê o povo da Vila Bode? – tornou papai.

 

– Sabe Deus! Tá por aí – disse o homem ou o que se parecia com homem.

 

– O senhor vai para onde? – perguntei-lhe.

 

– A lugar nenhum – respondeu o homem secamente, ainda sem mostrar o rosto.

 

– Como a “lugar nenhum”? – tornei a perguntar. Sem saber por quê, receei que o homem virasse o rosto para mim.

 

– É que toda essa vila está morta, não perceberam? Coisas acontecem por aqui, de dia ou de noite, mas ninguém vê quem faz essas coisas.

 

– E o senhor faz parte dessa gente? – perguntou papai, lançando um olhar significativo para mim.

 

– Agora faço, mas por pouco tempo, estou indo embora daqui – disse o homem.

 

– Para onde o senhor vai? – perguntei-lhe, já desconfiando de onde ele viera e para onde ia.

 

– Vou para Manaus, de onde eu vim – explicou o homem, que, durante todo o diálogo, se mantivera com o rosto escondido.

 

– O que o senhor veio fazer aqui, se tudo isso aqui está morto? – perguntei.

 

– Vim visitar minha tia, que estava para morrer – disse o homem.

 

– E ela ainda vive? – perguntou papai.

 

– Não. Quando cheguei, ela já havia sido enterrada.

 

– E aí o senhor resolveu ficar mais um pouco com os parentes... – falei para o homem.

 

– Não há parentes – disse o homem.

 

– Então o senhor mora com quem? – perguntei.

 

– Com ninguém; na verdade, não moro em lugar nenhum; vim procurar minha tia porque eu também estava muito doente, quase para morrer e precisava de ajuda; mas, quando cheguei... – disse o homem, interrompendo a frase.

 

Nesse instante, papai se aproximou de mim e cutucou meu braço como se me dissesse “vamos embora”, mas, atraído pelo jeito melífluo do homenzinho, não o atendi.

 

– Vejo que o senhor já está melhor – comentei.

 

– Sim, estou muito melhor do que antes; já não sinto dores nem nada – disse-me o homem.

 

Papai, agora me puxando pelo braço, sussurrou-me, com olhos expressivos:

 

– Para com isso, filho. Não vês quem é esse aí? Vamos já embora daqui!

 

Antes que lhe virássemos as costas e nos afastássemos, a criatura virou-se para nós e mostrou o que desde o início ocultara: um rosto bexigoso e carcomido por varejeiras, que me fez estremecer até à medula.

 

Quase correndo, afastamo-nos uns dez metros e só então olhamos para trás. A criatura havia repentinamente desaparecido, restando a estrada deserta e as casas desabitadas da Vila Bode.

 

Apesar do susto, papai ainda teve coragem para se deter diante de uma das velhas casas da vila e exclamar: “Meu filho, foi nesta casa que eu morei com mamãe no tempo dos americanos!”.

 

 

 

Casinha construida pelos americanos nos Anos 30 do sec. XX 

 

 

 

A casinha, como todas as outras casinhas da Vila Bode, estava fechada e parecia desabitada. Ao lado do batente da porta, via-se um buraco por onde – brincou meu papai, com olhos todavia tristes – podiam ar as almas dos moradores invisíveis e também os ratos.

 

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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