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Choro por ti, Belterra! ( Capitulo dez ) 1n1i

Nicodemos Sena - 05/02/2015

Cartaz afixado na antiga escola -

 

 

 

 

Afixada na parede da velha escola, havia um aviso escrito em papel cartolina: “A direção da escola avisa que as aulas iniciarão dia 24/03 (segunda-feira) no barracão comunitário”.

 

Mas onde se situava o tal “barracão comunitário”? Não sabíamos e nem encontramos alguém que informasse. Olhamos para a estrada, que ava em frente ao prédio abandonado, e não enxergamos gente humana ou outro tipo de gente. Sim, outro tipo de gente, pois, nesses mundões de meu Deus, há “gente humana” e “gente não-humana”, como os arinhos e outras criaturas que povoam a margem dos caminhos e a sombras das árvores.

 

Ainda mais estranho foi que, no chão da estrada, formado por uma areia encardida, havia rastros humanos e de animais domésticos, como os cachorros, gatos, galinhas e patos. Todavia, os autores dos rastros desapareceram como que por encanto. E isso às 11 da manhã, sol a pino, um sol de brasa, que penetra em todos os lugares e faz suar até a mais fria das almas! Ainda bem que na Amazônia o sol abrasador tem uma língua esponjosa, que vai lambendo as gotas que se formam sobre a pele e inundam os poros, pois não haveria lenço que pudesse livrar do sufoco.

 

Suando em bicas e com os miolos cozinhando, resolvemos deixar o carro em frente à velha escola e fomos andando devagar e cautelosamente pela estrada, com a sensação de que olhos curiosos e desconfiados nos observavam. Mas, onde estava o povo de Belterra, naquela sexta-feira que noutras cidades – como, por exemplo, Santarém ou Belém –, àquela hora da manhã, já se movimentava freneticamente pelas ruas? Já estávamos há pelo menos meia hora naquele ponto da Vila Bode e não avistáramos uma única alma!

 

 

 

Estrada deserta em Belterra

 

 

 

Do lado esquerdo da estrada havia uma daquelas casinhas brancas com portas e janelas verdes, construídas pelos americanos de um modo tão firme que, transcorridos setenta e cinco anos, embora fossem de madeira, ainda estavam de pé – verdade que maltratadas, devido ao evidente desleixo dos sucessivos governos brasileiros que, não tendo conseguido derrubar de uma vez o que os gringos tão solidamente construíram, vão homeopaticamente realizando o que parece ser o seu intento: derruir o patrimônio material, histórico e sentimental de Belterra, o qual, em mãos de governos competentes e esclarecidos, poderia trazer consideráveis dividendos ao município.

 

Como as outras portas, a porta e as janelas da casinha estavam fechadas. Olhando para a estrada até onde a vista alcançava, nada avistamos a não ser o lastro de chão deserto e as árvores domésticas e, atrás e entre as casinhas, aqui e ali, moitas e tufos de capim que medravam no espaço onde, em cidades mais bem-cuidadas, seriam as calçadas.

 

Três coisas se destacaram na minha percepção. Primeiro, uns restos de lixo jogados na frente da casinha (foto acima), a denunciar presença humana em sua pior expressão. E depois, os esqueletos do que outrora foram frondosas palmeiras imperiais, a registrarem o lento mas inexorável transcorrer do tempo, imprimindo uma nota melancólica (e por que não dizer sinistra?) ao ambiente a bem dizer (des)humanizado da Vila Bode. E, por último, os rastros de pneus, que faziam dois sulcos na estrada, indícios de trânsito de carros – mas fazia uma hora que estávamos na Vila Bode e não avistamos nenhum carro ou sequer uma bicicleta na estrada!

 

Para ironia desta história, avistei uma placa de PARE no cruzamento das duas estradas principais da Vila Bode (foto baixo), sem nenhuma serventia, pois, como já disse, não havia ali sequer uma “alma vivente” ou movimento de veículos que a justificassem – e as “almas mortas” ou os “espíritos da floresta”, de corpo etéreo, não se deslocam em veículos e nem se chocam nos cruzamentos.

  

 

 

 

Vila Bode e a impecavel sinalizacao na estrada sem transito

 

 

 

Eu procurava acompanhar todos os movimentos do meu pai, que ia daqui para lá e de lá pra cá, como um menino que de repente se vê andando no mítico espaço de um sonho. Ao deixarmos o nosso hotel, pela manhã, em Santarém, falei para mim mesmo que naquele dia dedicar-me-ia inteiramente ao meu pai. De uns tempos para cá esforço-me em conhecê-lo, compensar o “tempo perdido”, pois, quando eu tinha oito meses de idade, a minha avó Guida, mãe de papai, adotou-me como seu bichinho de estimação e não deixou nunca mais que meus pais me levassem de volta para casa, de sorte que um vazio de afeto se instalou no meu coração de menino e só aumentou com o ar do tempo, e é por isso que meu pai, nessa decisiva altura da vida, tornou-se muito importante para mim. Conhecê-lo melhor é conhecer melhor a mim mesmo. Pois onde termina o homem e começa o menino? Machado de Assis escreveu no “Memórias Póstumas de Brás Cubas” que “o menino é o pai do homem”.

 

Naquela manhã, propus-me a registrar não apenas os movimentos exteriores de papai, mas, principalmente, as suas emoções, pois o que torna uma lembrança inesquecível é a emoção que se preserva dos fatos; a emoção é a vida pulsante dos sonhos; de um sonho coletivo só restam os arquétipos (a casca do sonho); a memória coletiva não consegue reter a o sentimento do povo ou da massa (nos tempos modernos) no instante em que os espasmos e convulsões sociais marcam a História. Já ao indivíduo isso é possível. Com disciplina e treino, podemos reter a emoção de um momento em vigília ou no sono, e desse labor é que se extrai a matéria-prima da grande arte. Quem retém o “sentimento do mundo” (Drummond) ou a emoção dos acontecimentos jamais terá que sair “em busca do tempo perdido” (Proust).

 

Já perdi muito tempo na vida e não quero mais perder nem mais um instante. Para que um dia eu não tenha que correr atrás do tempo perdido é que me mantenho aceso perto de meu pai. Mas preciso reter não apenas a memória das suas emoções, como também a das minhas. E só bato fotos quando percebo que a emoção produzida pelo que vemos é tamanha que preciso registrar o mundo exterior (a casca do acontecimento), já que ninguém consegue fotografar o âmago (a essência) da Vida. A partir do registro do exterior (as fotos) é que procuro abrir a porta dessa espécie de quarto escuro onde guardei as emoções de papai e as minhas, naquele inesquecível dia em Belterra.

 

– Onde anda o povo da Vila Bode? – disse enfim papai, saindo de seu longo mutismo.

 

Não sabendo o que lhe responder, segui-lhe os os, esforçando-me em acompanhá-lo, pois ele, às vezes, disparava a andar e de repente parava, com uma euforia de menino.

 

Impressionou-nos a capela branquinha, com duas cruzes na cúpula, asseada. Com esse aspecto, não havia dúvida de que era uma igreja bem visitada. Mas cadê o padre? Cadê o povo? Nenhum acólito, nenhuma senhora bondosa, nenhum fiel! O mais completo despovoamento em torno da igreja e na rua, até onde os olhos alcançavam, fazendo-me lembrar da mítica Comala, de Gabriel García Márquez.

 

Na cruz maior, fincada no pátio da igreja, uma grande faixa de pano, ao que parece azul-verde-amarela (cores da bandeira brasileira), flamulava, indicando de qual direção, àquela hora costumeiramente abafada, vinha o vento. Sob o tórrido calor do meio dia amazônico, uma aragem estranhamente fria varria de leste a oeste da vila, acariciando o meu rosto, deixando-me em dúvida se era uma aragem de vida ou de morte. Olhei para papai e vi em seus olhos, já turvados pelo tempo, um misto de perplexidade e frustração.

 

“Esta não é a Belterra que papai sonhava encontrar”, pensei, já um tanto arrependido de tê-lo trazido ao lugar de suas mais caras lembranças.

 

 

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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