Gov cop 30


Choro por ti, Belterra! ( Capitulo nove ) i2wr

Nicodemos Sena - 14/01/2015

Adeus de Dona Anizia e Daniele -

 

 

 

 

Não foi fácil nos despedirmos de Dona Anízia e de sua neta Daniele. Elas nunca nos viram antes, e conversávamos, quando muito, há uns 30 minutos, mas parecia que nos conhecíamos há muitos anos.

 

Dona Anízia, querendo nos reter ali por mais algum tempo, tornou a oferecer-nos água – e bebemos; em seguida, insistiu para que aceitássemos “uma xicrinha de café”, e não nos deu tempo para dizer “não”. Desapareceu lá pra dentro da casinha, mas logo voltou com as duas “xicrinhas” (na verdade, duas canecas de lata) com o café. Sorvemos o café devagar, não só para evitar o risco de queimarmos os beiços na lata aquecida, como também porque o cafezinho de Dona Anízia estava muito gostoso.

 

– Eita cafezinho gostoso! – exclamou meu pai.

 

– Nós mesmos plantamos, colhemos e torramos o café, por isso é gostoso – comentou, orgulhosa, a mulher.

 

Terminamos de tomar o cafezinho de Dona Anízia e lhe agradecemos, já entrando no carro, a fim de que a boa senhora não tivesse tempo para apresentar um novo motivo para ficarmos ali mais um pouco.

 

Liguei o carro e seguimos devagar pela mesma Estrada 06. Pelo retrovisor, ainda vi Dona Anízia e Daniele acenando adeus, um adeus que se eterniza em minha memória.

 

Rodamos cerca de quinhentos metros, e a situação não mudou: amos por duas ou três casinhas de madeira, igualmente fechadas, mas sabíamos que olhos nos espreitavam através das brechas das tábuas ou de trás dalguma das árvores dos terreiros. Ou será que as almas viventes estavam na frente das casas e nós não as víamos? Confesso que cheguei a pensar nisso. A solidão daquelas estradas parecia algo tão real, que cheguei a pensar que todas aquelas pessoas com quem até então conversáramos não existiam.

 

Atento à direção do veículo, mas procurando ver papai, discretamente, com a minha visão periférica, imaginei a ansiedade que devia tomar conta, naquele momento, de sua alma, sabendo que, a qualquer instante, depois de 65 anos, despontaria diante dele a sua mítica Vila Bode.

 

Os olhos de papai, já nublados pelo véu dos anos, tinham dificuldade para enfrentar o que as margens da estrada deserta iam revelando. Via que papai evitava movimentos bruscos de pescoço; olhava para as margens da estrada como se pouco lhe importasse o que surgiria. Sabendo de sua índole naturalmente pacata e recatada, entendi que eu devia fazer de conta que não percebia a sua ansiedade. Diminuí ainda mais a velocidade do carro e, quando já quase parava, eis que, destoando de tudo o que até aí víramos, surge diante de nossos olhos, no meio de uma área descampada, uma casa branca, batentes das janelas verdes, coberta de telhas, com dois pavilhões. “Uma residência? Um prédio público?”, perguntei a mim mesmo. Impossível crer que se tratasse de uma ou outra coisa, pois, novamente, percebi que não havia viv’alma naquele lugar. Verdadeiramente, sentia-me perplexo e espantado.

 

Olhei para papai, em busca de uma resposta, e enxerguei-o ao meu lado, como que paralisado, os olhos fixos na casa branca. Não ousei quebrar-lhe o encanto.

 

De repente, como que saindo de um túnel escuro e profundo, papai disse, já saindo do carro, com os braços abertos, como se quisesse abraçar algo imenso e longínquo, que só ele parecia enxergar:

 

– Meu filho, eu estudei nessa escola!

 

 

 

 

Escola construida pelos americanos em Belterra

 

 

 

Em seguida, como que voltando a ser um menino, com o semblante transformado e o coração exultante, papai deixou-me para trás e entrou correndo no pavilhão maior da casa branca. Sumiu lá pra dentro. Não fui atrás dele imediatamente. Não podia quebrar a magia daquele momento. Sabia que papai esperara durante muitos anos por aquele instante. Ele precisava acertar as contas com aquele ado que tanto o machucava, depois de 65 anos. Tinha que derrotar um inimigo pequeno que nem ele, mas que, 65 anos depois, tornara-se um grande fantasma, um gigante, que ainda lhe tirava o sono. Eu sabia de cor essa história; papai contara-me incontáveis vezes. Contava fingindo que não sofria com a lembrança; mas sofria. Agora tem a oportunidade – certamente única – de vencer esse gigante.

 

Deixei ar uns cinco minutos e só então resolvi ir atrás de papai. Devagarinho, pisando suavemente, com receio de ver o que imaginava que iria ver, entrei na casa branca, mas, antes de entrar, olhei para a placa de ferro já bem enferrujada, que estava afixada na fachada do prédio, onde pude ler: “Ministério da Agricultura – Delegacia Federal da Agricultura – ESCOLA MANOEL G. DE PAIVA – Reformada em 1982 na istração Walmir Hugo dos Santos”.

 

Construída pelos americanos nos anos 30 do século XX, para servir aos filhos dos seringueiros contratados pela Companhia Henry Ford, a escola ou por essa reforma, ainda no período dos governos da Ditadura Militar, que se instalara no Brasil em 1964 e que aboliu as eleições para governador de Estado e prefeito dos municípios e instituiu a ominosa figura do “interventor nomeado”. Suponho que o tal Walmir Hugo dos Santos, que aparece na placa, tenha sido um dos interventores nomeados pela Ditadura para istrar o município de Santarém, o qual, à época, ainda abarcava a área que depois se tornou o município de Belterra. Ao lado dessa placa, avistei outra, de acrílico, informando que a escola ou por nova reforma, em 2005, já na istração do primeiro prefeito de Belterra, eleito pelo povo, Geraldo Pastana.

 

Tudo isso ou pela minha cabeça assim num “zás”, pois o que me prendia mesmo a atenção era a curiosidade a respeito do que estaria fazendo papai lá dentro da casa branca. Aliás, eu até era capaz de adivinhar o que ele estava fazendo, mas precisava constatar com meus olhos.

 

Pé-ante-pé, enveredei pelo corredor que levava ao terreiro da escola, uma área quadrada tomada quase completamente pelo capim, o que denunciava o estado de abandono em que fora largado o estabelecimento, situação percebida desde que avistamos o prédio, daí que fiquei espantado quando, antes de olhar para o terreiro da escola, escutei vozes alteradas que altercavam entre si. Mais abismado fiquei ao perceber que uma das vozes era a de papai, mas – pasme o leitor! – a voz de papai saía-lhe da garganta frágil e cortante como a de uma criança. Não tive dúvida de que era a voz de papai. De quem seria a outra voz, também de criança? Na escola completamente abandonada, haveria uma criança, sozinha, a brigar com papai? Era difícil crer nessa hipótese. Mas a voz dessa outra criança era tão diversa da de papai, que jamais me aria pela cabeça que papai, naquela dramatização absurda, desempenhasse os dois papéis. Mas era exatamente isso o que acontecia: De pés, no meio do terreiro abandonado, com capim alcançando-lhe a cintura, papai blaterava e gesticulava contra o interlocutor invisível, e este, por sua vez, com a mesma ferocidade verbal, rebatia aos ataques, jamais se misturando as vozes, claro, já que o ator que as proferia era a mesma pessoa.

 

A disputa se deu mais ou menos assim:

 

– Pois, agora, seu covarde, se és homem me bate! – dizia papai.

 

– Se eu quisesse, batia de novo em ti! – retrucava o “outro”. – Pois continuas sendo um banana.

 

– Batia nada! Batia naquela época; quero ver hoje; tens é medo de mim.

 

– Axi que eu tenho medo, seu fedelho! Tenho é pena de ti!

 

– Então vem pra cima de mim, seu bosta! – desafiava papai, já partindo pra cima do inimigo invisível e rolando sobre este no chão.

 

Quando varei no terreiro, avistei papai assim: rolando sobre o capim, como que agarrado a um corpo invisível, que parecia resistir-lhe tenazmente, pois papai não o largava de jeito nenhum, como que lhe apertando o pescoço.

 

Sem saber se papai representava uma pantomima ou se deveras tinha ficado louco, quedei-me a observar a cena, a certa distância, até que papai, suado e arfando, largou o seu oponente no chão e levantou-se, batendo com as mãos os fragmentos de folha e capim que se haviam grudado em seu corpo. Quando levantou os olhos e viu que eu o observava, abaixou o semblante, como que envergonhado, mas, depois de breve hesitação, rolou novamente no chão, dando murros na terra e no capim, mas, desta vez, queria me divertir, representando para mim uma briga irreal.

 

– Pronto! Matei o bicho que estava me matando – disse-me, em tom novamente sério.

 

E nem precisou continuar. Eu sabia do que ele estava falando. Uma história muito antiga, que papai me contou muitas vezes e, a cada vez que contava, lágrimas escorriam dos seus olhos. A triste história do menino que no primeiro dia de aula é espancado e humilhado por um aluno maior, sob o olhar complacente dos professores, e que, por isso, nunca mais teve coragem de voltar à sala de aula.

 

 

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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