Gov cop 30


Choro por ti, Belterra! ( Capitulo oito ) 3iz2n

Nicodemos Sena - 20/12/2014

Dona Anizia e sua neta Daniele na rota do Curupira -

 

 

 

 

Deixamos a Estrada 07, que leva a Aramanaí, e enveredamos pela Estrada 06, estreitinha e de chão, que nos levaria à Vila Bode. Como tudo o que até aí víramos em Belterra, a Estrada 06 parecia solitária e desértica.

 

Eu estava impressionado. Desde que entramos na área de Belterra, percorríamos suas estradas e não avistávamos pessoa alguma circulando por elas. Ninguém. Até mesmo os cachorros andarilhos desapareceram, como se houvessem firmado um pacto de silêncio com seus donos. Apenas, de vez em quando, um pássaro selvagem sobrevoava de um lado para o outro da estrada. Enxerguei tucanos nos galhos de uma castanheira – das poucas que sobreviveram à sanha “civilizatória” dos madeireiros; e bandos de curicas e papagaios quebravam, pelo menos um pouco, com o seu característico alarido, a aparente imobilidade do lugar e do tempo. De gente humana, apenas vestígios: um ou outro barraco afastado da estrada, debaixo das árvores, portas e janelas invariavelmente fechadas; e uma ou outra clareira recém-aberta entre o mato baixo.

 

Seguíamos calados, o carro deslizando devagar. Sabíamos que havia gente dentro das casas e olhos nos espreitavam detrás das paredes e das árvores. O estranhamento e o silêncio, no interior da Amazônia, ainda é a primeira forma de contato humano, mesmo numa “cidade” como Belterra!

 

A lembrança desse ambiente estagnado e do tempo aparentemente parado na Estrada 06 me fez, neste exato instante, buscar na prateleira da minha estante, o estranho livro de Campos de Carvalho – “A Chuva Imóvel“ – cuja narrativa começa assim:

 

“Foi então que me vi numa gare extremamente vazia. Tão vazia que nem a minha sombra se refletia. Alguém, uma voz, me sussurrou ao ouvido: CAFARNAUM.”

 

Era assim que eu também me sentia naquela hora, na desértica Estrada 06, “tão vazia que nem a minha sombra se refletia nela”.

 

Eu não ouvi essa voz sussurrando CAFARNAUM ao meu ouvido, mas tive a certeza de que meu pai – que aos 78 anos de “estrada” se tornara mestre em conversar com o silêncio – ouvira. Era o “filho” voltando à terra. A sua Cafarnaum era Belterra! Tal como a cidade bíblica, Belterra parecia se fechar diante de sua presença. Cadê o povo de Belterra? Onde está a Vila Bode? Será que ainda existe? Ou só ficou o nome? Um nome sem ado e sem história. Que pessoas, 65 anos depois, vivem na Vila Bode? Será que meu pai encontrará alguém do seu tempo? Até aqui Belterra parece uma cidade fantasma ou encantada.

 

Íamos assim distraídos em nossos pensamentos, quando, enfim, de repente, enxergo uma alma vivente na Estrada 06. A “alma” encontra-se de pés, à frente de uma pequena casinha de madeira, do lado esquerdo da estrada. Paro o carro e dou marcha à ré. A alma tem um rosto marcado pelo tempo, é pequenina e nos sorri; em seus lábios, ressequidos por anos e anos sob o sol inclemente do Equador, leio palavras de acolhimento, mas sei que meu pai escuta CAFARNAUM. Meu pai não leu e nem mesmo sabe que houve um escritor com o nome Campos de Carvalho, mas ele próprio poderia ter sido a inspiração do artista, e papai sabe, talvez melhor do que o escritor, o que seja a SOLIDÃO.

 

Desci do carro para falar com a mulher que estava diante de nós, mas, notando que deixara a porta aberta, voltei para fechá-la e imediatamente percebi a inutilidade do gesto, pois tinha certeza de que nenhum carro, nem mesmo de bois, aria na Estrada 06 naquele dia – e nos outros dias também.

 

– Pode deixar a porta do carro aberta, pois só o Curupira a por aqui, mas de noite, de dia ele não vem – disse a mulher.

 

Pensei que a mulher dizia aquilo de brincadeira, mas no curso da conversa vi que não era assim.

 

– Quem são vocês e de onde vieram? – perguntou, meio desconfiada, Dona Anízia (esse era o nome da mulher).

 

Papai disse o seu nome e o meu e também de onde viéramos e o que fazíamos por ali.

 

– Ahnnn – fez a mulher, e acrescentou, já mais tranquila: – Desculpem eu ter perguntado de onde vocês vieram; é que conhecemos todos que moram por aqui e não lembrava de já ter visto vocês. Quando escuto algum barulho na estrada ou algum assobio, fico logo alerta. Quase sempre não é ninguém. Vivemos aqui tão isolados que já ninguém se lembra da gente. Só o Curupira a de noite assobiando por essa estrada.

 

– Como sabe que é o Curupira e não uma pessoa humana? – perguntei.

 

– Por que só o assobio longo e fininho do Curupira é capaz de arrepiar um vivente. Quando ele vem, a gente escuta de longe: “Fiiiiiiiiiiii”, “fiiiiiiiiiiiiiiiii”, vem assobiando e quando chega em frente de casa solta um assobio mais longo: “Fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii”, tão longo e tão fino que até gela a alma da gente.

 

– Mas ele não faz mal a ninguém, não é mesmo? – tornei a perguntar.

 

– Não. O Curupira é bonzinho, não faz mal a ninguém. Às vezes até entra no terreiro e vai à cozinha beber água ou comer algum resto da a; a gente nunca vê, só escuta o babujo no pote e nas vasilhas, mas logo vai simbora. Há quem diga que não é o Curupira mas sim almas penadas de antigos moradores de Belterra, que ainda vivem por aí. Sei lá quem é, só sei que gente não é, mas não tenho medo, apenas me arrepio.

 

– E se eu e meu filho formos duas almas penadas? – brincou papai.

 

– Vocês não, mas eu e minha neta Daniele, que vive comigo, sim. O abandono aqui é tão grande que tem dia que até penso que somos duas almas penadas.

 

Conversávamos debaixo de um sol muito quente e papai pediu água.

 

Dona Anízia entrou imediatamente na casa e, um instante depois, retornou com água numa lata e dois canecos, também de lata. Uma mocinha de uns 17 anos veio com ela. Era sua neta Daniele, menina espigada e sorriso tímido.

 

Enquanto bebíamos a deliciosa água, Dona Anízia continuou falando:

 

– Essa água é de cisterna, pois não temos água encanada na Estrada 06.

 

Segundo ela, os moradores da Estrada 06 eram culpados pela falta de água encanada, pois na época do primeiro prefeito de Belterra, Geraldo Pastana, eles se recusaram a participar dum mutirão pra restaurar o encanamento que os americanos instalaram há muitos anos e por isso enferrujara. Noutras estradas de Belterra, por exemplo, a Estrada 08, da Vila Curica, onde os moradores aceitaram participar do mutirão, já havia água encanada.

 

– A senhora foi contra ou a favor do mutirão? – perguntei à Dona Anízia.

 

– Claro que fui a favor, pois era para benefício nosso, de todo mundo.

 

– Mas não é obrigação da Prefeitura colocar água encanada em toda a cidade? – indaguei.

 

– Pode até ser, mas era o primeiro prefeito e ele encontrou Belterra sem recursos; o prefeito Geraldo Pestana pediu o apoio do povo. Ele era bonzinho.

 

 

(Continua no próximo capítulo)

 

 

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