Choro por ti, Belterra ! (Capítulo quatro) 4s4m1w
Eu e meu pai descemos do carro e esperamos que alguém saísse da humilde casinha e viesse nos atender. Mais ou menos um minuto se ou, e nada. Bati palmas duas vezes, e ninguém apareceu.
Vi formar-se na testa de papai aquele vinco de expectativa que eu já bem conhecia, pois era o mesmo vinco que se formava toda vez que ele me contava o seu reencontro, dez anos depois, com a mãe que o deixara para trás, órfão de pai, com apenas nove meses de vida.
Essa mãe, minha avó, já era falecida. Morreu em 1976, aos 58 anos de idade, em Santarém (sem atendimento médico, porque ela não tinha dinheiro para procurar um médico ou porque esse profissional era então coisa rara no Oeste do Pará), vitimada, provavelmente, pela “doença de Chagas”, que é transmitida pela picada do inseto “barbeiro”, que prolifera em lugares como a Amazônia, onde as pessoas habitam em barracas de palha e “pau-a-pique” (barro caiado em tranças de varas).
Eu sabia que, naquele momento, embora a casinha cercada de madeira e coberta com telhas de amianto já fosse mais salubre do que as antigas casas de pau-a-pique, a situação de espera em que nos encontrávamos, diante da humilde casinha, transportava papai para um dia já remoto do ano de 1944, quando ele, com um saquinho nas costas, viu-se diante de uma casinha situada na Estrada 6, na Vila Bode, numa Belterra que jamais lhe saiu da lembrança, uma casinha que morava dentro de sua inesquecível Infância, pequenina mas simpática, uma casinha de gente pobre, sim, mas agradável e acolhedora, mais ou menos como essa que agora víamos diante de nós.
Depois de perambular de um lugar para outro, em busca da mãe cujo rosto já não se lembrava, papai acabou em Santarém, na casa de um tio-avô chamado “Velho Dico”. O reencontro com a mãe estava prestes a acontecer.
O “velho” sabia que a mãe do papai, sua sobrinha, morava em Belterra; certa vez a visitara. Mas como enviar “o menino” se, além da estrada — que na verdade não ava de um caminho —, havia apenas a via marítima? Aos sábados e segundas-feiras, o barco “Deoclécio” saía de Santarém e ia para Belterra, pequena vila central, a cujo porto, de nome Porto Novo, por ser muito longe, ia-se de carro.
Certo dia, o velho perguntou se papai queria mesmo ir para a casa da mãe dele, e ele disse que queria.
— Mas é longe! — avisou o velho.
— Mesmo assim, vou — falou papai.
Então o velho procurou o comandante do “Deoclécio”, pagou a agem e disse-lhe:
— Leva esse menino até o Porto Novo, e de lá encaminha ele pra serra.
Belterra ficava numa serra e lá papai devia procurar a mãe. Durante a viagem, que durou um dia inteiro, ele chorava, sem saber o que encontraria pela frente. Novamente ia levantar a vida e andar daqui pra acolá, sem mãe, sem ninguém, sem dinheiro pra pagar o transporte da beira até lá em cima, quanto mais para voltar para Santa Irene — assim ele pensava.
Naquele tempo, Belterra tinha um movimento danado. O barco chegava trazendo mercadoria, e o povo corria para o porto. Era carro de lá pra cá e de cá pra lá, mas só carro de americano. O magnata norte-americano Henry Ford, pioneiro da indústria automobilística, resolveu investir no Brasil em plena II Guerra Mundial (1939-1945); com o que havia de mais moderno, organizou plantações da hevea brasiliensis, mais conhecida como a árvore seringueira, de cujo leite ou a produzir a borracha necessária para a fabricação dos pneumáticos usados nos carros de guerra; dessa atividade surgiram Belterra e Fordlândia, no Rio Tapajós. Carro particular, de brasileiro, só o caminhão antigo do Manuel Rufino, filho do comerciante Raimundo Silva.
Papai ficou lá na beira, de novo sozinho, com seu saquinho nas costas. O motor que o trouxe voltou para Santarém. De pés, lá no porto, sem dinheiro nem nada, via o pessoal se preparando para subir a serra. Não demorou e apareceu o caminhão do Manuel Rufino, um cara bacana, alegre e falador, que vivia na brincadeira com todo mundo. Por ser dono do caminhão, Manuel era ali um cara importante. O pessoal chegava de Santarém e subia para Belterra empoleirado no caminhão, e o pessoal lá do alto descia para fazer compras, principalmente de peixe, lá no Porto Novo.
Naquele dia papai se meteu no meio do pessoal e também se empoleirou na carroceria do caminhão. E toca a subir a serra, rumo a Belterra, pela serra inclinada, de estrada arenosa, o caminhão peidando pra subir e o sol cozinhando os miolos. Depois de uma hora, chegou ao Posto Fiscal da Estrada 01, bem no centro de Belterra, onde ficava o comércio.
Belterra era um povoado grande; desembarcou muita gente. O Manuel Rufino saía distribuindo ageiros por todas aquelas estradas; onde o sujeito morava, lá deixava, e cobrava a agem.
Ali, no canto da carroceria, quietinho, papai pensava consigo: “Não sei onde estou; vou rodar nesse carro até me deixarem por aí; vou rodar, rodar, rodar... e não vou ter onde ficar, alguém vai ter que me acolher”.
E foi o que aconteceu.
Manuel Rufino começou a rodar, rodar... e deixava ageiro aqui, lá, ali. Quando chegaram à Estrada Oito, lá muito em cima, só tinha três ageiros no carro, mas logo esses três também desceram, restando apenas ele no caminhão. Então o Manuel Rufino parou o veículo e perguntou:
— E tu, moleque, pra onde vais? Onde vais ficar?
Papai respondeu que não sabia.
— Como que não sabes? Porra! — bradou o Rufino.
— Não sei — repetiu o menino.
— Como não sabes, rapaz? De onde tu és? De onde vens? — insistiu Rufino.
— Vim de Santarém — falou.
— Onde tu vais ficar? — tornou Manuel Rufino.
— Não sei — repetiu.
— Quem é teu pai?
Ele disse que não tinha pai. Mãe, em Belterra, sabia que tinha; vivia com um homem que era seu padrasto, mas não sabia onde moravam.
— Como é o nome do teu padrasto? — perguntou Manuel Rufino.
— Carmelo — respondeu.
— Porra, peste! Então és enteado do Carmelo?!
Manuel Rufino conhecia o homem que vivia com a mãe do papai, o tal Carmelo, que até então papai não conhecia. Depois soube ele que o Carmelo era freguês do comércio do Manuel Rufino; comprava fiado e, no fim do mês, quando os americanos lhe pagavam o salário, as dívidas já eram descontadas lá mesmo no escritório da Companhia.
— Então fica aí; sei onde eles moram, vamos ar lá; quando chegar lá em cima, deixo-te!
Pensando que ia enfim se encontrar com a mãe, o menino ficou alegre. E o caminhão foi rodando, rodando... De repente, parou.
— Olha aí! Chegamos à casa da tua mãe! — gritou Rufino. — Tua mãe mora naquela casa! Podes ir. Depois acerto a agem com o Carmelo! — ordenou.
Naquela estrada as casas eram todas de palha. Papai peguei a sua trouxinha e desceu do carro. Foi andando no rumo da casa que o Rufino disse ser a de sua mãe. Na frente da casa parou, sem coragem para bater na porta. Ali, de pés, ficou pensando: “Será mesmo que é a casa da minha mãe?”
Parecia uma casinha de peão, simples, como as que havia ali, com piso de chão-batido e paredes de palha; não era como outras, que viu quando avam noutra estrada, de telha e madeira, melhor equipadas, que depois soube serem as casas dos funcionários mais graduados da Companhia, mas era uma casinha asseada e boa.
Ficou ali, na frente da porta, escutando e com medo de bater. Ansioso, perguntava-se como seria a sua mãe. Depois de não sei quanto tempo, escutou um barulho lá dentro. Então criou coragem e bateu: “Pá! Pá! Pá!”. A primeira vez, e nada. Bateu a segunda vez e ouviu uma voz de mulher perguntar:
— Quem é?
— Sou eu! — respondeu.
Depois de algum tempo, a dona da voz apareceu na porta e ficou olhando para o menino.
Era difícil crer que aquela fosse a sua mãe. Ficou irando a mulher que ele via à sua frente, pois era alta e tinha a testa larga e o nariz afilado, bonita mesmo.
— Quem és tu, menino? O que queres? — perguntou a mulher.
Um nó na garganta impedia-o de falar. A mulher tornou a perguntar de onde ele era.
— De Santarém — conseguiu, enfim, dizer.
— De Santarém? — repetiu a mulher, desconfiada.
Em vez de responder, papai perguntou:
— A senhora é a Dona Guida?
— Sim, sou eu — confirmou a mulher.
Então papai disse:
— Pois eu sou seu filho!
— Meu filho?! Quem tu... és? Como é teu nome?
— Meu nome é Bernardino — respondeu.
Quando papai disse que ele era o Bernardino, a mulher deu um o à frente e repetiu:
— Bernardino?! Então és o “Bibi”?
Quando a mulher disse “Bibi”, o menino acreditou que era mesmo a sua mãe, pois, desde que se entendia por gente, em todas as casas onde morou, o chamavam de “Bibi”.
— Eu não acredito! Quem te mandou aqui? — tornou a mulher.
— O velho Dico — respondeu.
Então a mulher se abraçou com o menino e este com a mulher, e ambos choraram.
Agora, 70 anos depois, diante da casinha de madeira e amianto, numa estrada que depois soubemos ser a Estrada 07, que liga Belterra a Aramanaí, vejo a mesma expectativa no semblante do meu pai, cujos olhos começam a ficar marejados. Mesmo sabendo que a mãe já não está neste mundo, papai gostaria que ela aparecesse de novo na porta daquela casinha e lhe desse aquele abraço terno e apertado, respingado com lágrimas, do qual jamais se esqueceu.
Torno a bater palmas, mas ninguém vem nos receber. Estamos quase desistindo, quando uma mulher alta e magrinha, que certamente durante todo o tempo estivera nos espreitando dalgum lugar, saiu da casinha e veio timidamente, como que arrastando as pernas de tão lentamente que se movia, em nossa direção.
— O que os senhores desejam? — perguntou a frágil mulher.
(Segue no próximo capítulo)
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