Gov cop 30


Choro por ti, Belterra ! (Capítulo Três) 4l6r2h

Nicodemos Sena - 01/10/2014

Uma estrada de Belterra -

 

 

 

Vínhamos tão entretidos com a nossa conversa e com nossos pensamentos, que nem percebemos a entrada principal de Belterra. Só paramos dez quilômetros depois porque a eternamente inconclusa estrada Santarém-Cuiabá estava sendo consertada e havia uma placa que avisava PARADA OBRIGATÓRIA.

 

Antes que pensássemos em regressar pela Santarém-Cuiabá, vimos, à direita, saindo da estrada em reforma, outra estrada, esta porém de terra, estreita e longa, muito longa, sulcada por pneus de carro a mostrar que, apesar de precária, era transitável.

 

Era uma estradinha tão longa, que ia se afinando até se tornar um pontinho na linha do horizonte; de um lado e de outro, capim baixo, e uma capoeira rala na área mais afastada.

 

Não avistamos nenhum ser vivente, a pé ou de carro, se aventurando por aquela estrada. Hesitamos por alguns instantes. Por mim, voltaríamos pela Santarém-Cuiabá até a entrada principal da cidade.

 

Mas deixei que meu pai tomasse a decisão. Vi em seu rosto uma expressão parecida com decepção. Apesar de ser um homem enrijecido pelas lutas e provações da vida, meu pai é um homem sensível; já o vi ar por momentos difíceis sem dar um resmungo, e se há uma coisa que ele não gosta é de ser pesado a alguém, nem mesmo a mim, que talvez seja a pessoa que ele mais confia neste mundo, pois já amos poucas e boas juntos; a nossa amizade se forjou nesses momentos de angústia, e não nos fáceis momentos de euforia, por isso não interferi nesse momento de hesitação.

 

Enfim, papai disse: “Sigamos por essa estradinha, pois em Belterra todas as estradas acabam levando à Estrada Um”.

 

Dei partida no carro e nos metemos pela estradinha de terra que parecia nunca ter fim.

 

Deixei o carro rolar devagarzinho naquela estrada fina e deserta. O silêncio voltou a reinar entre nós. Além dos nossos pensamentos, só escutávamos o barulho das rodas sobre a terra. “Que estrada é essa? A 7, a 8, a 9 ou a 10? Cadê o povo de Belterra?”, devia estar se perguntando meu pai.

 

“Não me lembro dessa estrada”, disse ele, por fim.

 

“Isso é normal; depois de algum tempo, as coisas começam a se apagar em nossa memória, ou são modificadas”, disse-lhe eu.

 

“Pouco importa”, disse ele. “Pela frente ou por trás, hoje Belterra não me escapa”, completou papai, com um sorriso.

 

O primeiro vestígio de atividade, na margem esquerda da estrada, foi o portal da fábrica de beneficiamento de madeira IMEBRAS.

 

 

 

 Fabrica de beneficiamento de madeira

 

 

 

“Isso não existia no tempo em que Belterra era dirigida pelos americanos, na década de 40 do século ado”, comentou papai.

 

“Essa fábrica de beneficiamento de madeira provavelmente ocupa o espaço que era das seringueiras”, disse eu.

 

A fábrica parecia desativada, pois não vimos viv’alma em nenhum lugar das instalações. Havia velhos caminhões e tratores lá ao fundo do terreno, ao lado de um galpão também com aspecto de abandono.

 

“Também não é fácil para essa gente que vem de fora achando que terra barata ou de graça por si só garantem prosperidade”, disse eu, sem esperar qualquer comentário de meu pai, pois ele, em geral, fica “mudo” diante dos estragos que os forasteiros causam à Amazônia. Não porque não se interesse pelo destino da terra onde nasceu, mas se sente impotente para modificar o rumo dos acontecimentos.

 

Desta vez, porém, para minha surpresa, falou: “Os americanos que construíram Belterra também chegaram aqui com todo o gás, achando que ia ser fácil domar a terra e o homem da Amazônia, mas, dez anos depois, acabaram indo embora derrotados pelas morrinhas da natureza e do homem”.

 

Novo silêncio se abateu sobre nós. Mas eu era capaz de ver os pensamentos que se desenrolavam na mente de papai como um filme há muito conhecido, cujos diálogos na verdade não avam de um monólogo que ele foi criando ao longo da vida; um monólogo cheio de solilóquios, dentro dos quais centenas de personagens, reais e inventados, viviam suas vidas independentes.

 

O trecho que agora ava na bobina do tempo era o de um grande incêndio que já consumia pelo menos duas quadras de seringueiras, causado de propósito por seringueiros que assim esperavam ser chamados eles mesmos para apagar o incêndio e com isso ganharem pelas “horas extras” de serviço.

 

“Eu nunca fiz isso, filho”, disse-me papai, cortando o silêncio, sabendo que eu sabia do filme que lhe ou pela cabeça, pois já ouvira muitas vezes esse e outros episódios da antiga vida em Belterra, no tempo dos americanos.

 

Belterra era dividida em Quadras. Em cada quadra havia uma torre de onde o vigia podia detectar com antecedência, por 24 horas, de dia ou de noite, o princípio de um incêndio. Era a luta dos americanos contra o homem do lugar, arrebanhado para trabalhar numa empresa que lhe parecia estranha. E era mesmo estranha, estrangeira, dos americanos, com os equipamentos e os métodos trazidos de fora, alheios à experiência e cultura do povo local.

 

“Os americanos não eram bonzinhos, como querem se mostrar, mas trouxeram coisas boas que o nosso povo não soube aproveitar, como educação e disciplina no trabalho”, disse meu pai.

 

“E agora, 65 anos depois, na memória parece que foi ontem, mas ao mesmo tempo já vai longe demais”, disse eu, enquanto continuávamos rodando pela estrada deserta.

 

“Onde essa estrada vai dar? Será que em algum ponto se encontra com a Estrada Um, onde tudo começa? Sei que Belterra está lá, mas onde? Será mesmo que ainda existe?”, falou baixinho meu pai, talvez para que eu não lhe ouvisse. Talvez temesse seguir em frente e descobrir que a sua Belterra existia já somente em sua mente. Ou talvez a encontrasse tal qual era, perdida e solitária, habitada por uma gente inconsciente de seu destino, disposta a servir e ao mesmo sabotar a quem se impusesse como senhor de suas vidas.

 

Assim foram os portugueses que vieram na primeira leva exploratória, nos séculos XVII e XVIII; assim foram os agentes do governo brasileiro após a Independência; assim foram os militares e os tecnocratas que dirigiram a Amazônia com mão de ferro durante a Ditadura Militar de 1964, e que entregaram a Amazônia ao grande capital internacional e nacional; assim foi durante os três primeiros governos a sucederem a Ditadura Militar, bem como acontece hoje, 2014, sob o projeto desenvolvimentista dos governos do PT (Partido dos Trabalhadores). Gente e projetos que vêm de fora e se impõem ao povo amazônico com a força das coisas inexoráveis.

 

Não rodamos sobre a estrada fina e deserta mais do que 15 minutos, no entanto, parecia já haver transcorrido uma eternidade quando essa estrada cruzou com uma estradinha asfaltada.

 

“Ôpa! A coisa vai melhorando!”, exclamei, com o coração mais aliviado. Pois o asfalto, esse elemento da civilização urbana de nossos tempos, como que dá firmeza aos nossos os, mesmo que seja a pantanosa firmeza que as obras de asfaltamento em geral representam para o erário público, com o escândalo do enriquecimento ilícito através dos “superfaturamentos”.

 

Mas, para onde nos levaria a estrada asfaltada? Não havia qualquer indicação no cruzamento das duas estradas. E também não se enxergava viva’alma. Belterra, até aí, parecia uma cidade fantasma.

 

Novamente hesitamos. Seguiríamos pela estrada de terra ou pegaríamos a estrada asfaltada, mas, neste caso, que rumo tomar, esquerda ou direita?

 

De repente, como que do nada, surgiu diante de nosso olhar uma humilde casinha de madeira, rústica mas com aspecto agradável, quase na esquina das duas estradas. Mas, como já ia parecendo um costume, as obras e instalações humanas ali surgiam e desapareciam sem dar vestígios de seus construtores ou habitantes.

 

 

 

Casinha em Belterra

 

 

 

O objetivo de papai era reencontrar os lugares onde viveu e trabalhou durante os anos da sua infância dourada em Belterra, no tempo dos americanos. Como só tínhamos aquele dia para fazer esse regresso ao ado, não podíamos zanzar sem rumo o dia inteiro. Foi então que resolvemos pedir orientação aos moradores daquela humilde casinha, que certamente era habitada, pois, encostada à cerquinha de estacas de madeira, avistamos uma bicicleta pequenina, azul e limpinha.

 

Em vez de bater palmas, buzinei duas vezes e ficamos esperando alguém sair de dentro da casinha.

 

Pelo esmero com que foi feita a humilde casinha e pela ordem e limpeza com que as coisas em torno da casinha se apresentavam, bem como pelo zelo que o estado da bicicletinha revelava de seu proprietário, eu só podia esperar que pessoas doces e agradáveis sairiam de dentro da casinha para nos atender.  

 

(Segue no próximo capítulo)

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FRASE DO DIA: “O mundo é um espelho que reflete a imagem do observador” (W. Thackeray)

 

 

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