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Choro por ti, Belterra! (Capítulo um) 1s59t

Nicodemos Sena - 11/09/2014

 

 

 

Depois de dois meses de silêncio, retorno com algo que até poderá não agradar àquele “leitor médio”, que se acostumou às inofensivas efemérides, mas não o deixarei indiferente.

 

Há um ano e meio, desde que reassumi esta coluna, vinha escrevendo sobre fatos e episódios, vividos ou de ouvi dizer, gravados na memória ou em recortes de jornais e revistas, ou na página de livros já amarelados e carcomidos pelo tempo, os quais, nas minhas andanças de um lugar para outro, nos vários bairros e cidades onde morei, foram sendo guardados, à revelia de minha vontade, tão fortes que eram os fatos e episódios, naquilo que chamo de o meu “Balaio Amazônico”, espécie de Caixa de Pandora da lenda grega, onde a chave para a decifração dos principais enigmas do homem foi preservada.

 

Todo cinquentão que nem eu, goste ou não do que vou escrever na série de textos que ora inicio em “O Estado do Tapajós”, à qual intitulei “Choro por ti, Belterra!”, compreenderá o que estou dizendo. Pois todo cinquentão já viveu o suficiente para também ter consigo o seu “baú” de lembranças e relembranças, e conhece a dor que sentimos quando remexemos nas coisas que queremos esquecer e que, quanto mais o tempo a, invadem nossos dias com mais insistência.

 

É que todo cinquentão acaba descobrindo que dentro da sua Caixa de Pandora, ou do seu Baú de Lembranças, ou (como é o meu caso) do seu “Balaio Amazônico”, além de amarelecidos recortes e velhos livros, há também gente antiga, de carne e osso, que ainda vê, analisa, pensa, reflete e filosofa, sobre a natureza, sobre a vida, sem que alguém se dê conta de sua existência. Gente como eu e você, que nasceu, batalhou e teve a sua importância, ainda que pequena, neste mundo, mas, pela “seleção natural” da vida social, foi deixada para trás e substituída pelas novas gerações e tornou-se gente “invisível” a atravancar o dia a dia das famílias, ruas, bairros, cidades e até mesmo do país que ajudou a construir.

 

Tenho várias pessoas assim, dentro do meu Baú de Lembranças (o meu Balaio Amazônico). Uma dessas pessoas, num país que infelizmente descarta tão facilmente os idosos, é o meu pai Bernardino Sena. Aos 78 anos de idade, no auge de sua experiência e sabedoria, como tantos idosos em nosso país, viu-se lançado num baú de lembranças, de onde, durante dez dias, consegui retirá-lo.

 

Bernardino Sena, meu pai, nasceu no Lago Grande, município de Santarém, em 1934. Quinto filho dos primos legítimos – Guida Sena e Francisco Sena. Mas ficou órfão de pai com um ano de idade, quando Francisco Sena, o avô Bernardino Sena (pai de Guida) e outros membros da família faleceram vitimados pela que ficou conhecida como a “Grande Peste de Impaludismo” (na verdade, surto mortal da Malária) que, em poucos dias, arrasou milhares de pessoas no Baixo-Amazonas. A mortandade teria sido tão nefasta que quase não sobrava ninguém para enterrar os mortos. Crianças continuavam mamando nos seios das mães mortas. Remadores desfaleciam e morriam sem chegar ao cemitério onde iam enterrar alguma vítima da tragédia, deixando a canoa à deriva.

 

Com 21 anos, Guida escapou da peste, mas não da miséria que se seguiu. Viúva, com cinco filhos entre 1 e 6 anos para criar, viu-se obrigada a aceitar emprego de doméstica em casa de uma parenta que se casara com um militar que viera do Sul e prestava serviços em Óbidos, isto porque o sogro Figueira apoderou-e da casa e do gado que o falecido Francisco Sena deixara. Impossibilitada de levar consigo os filhos, deixou-os no Lago Grande com parentes e vizinhos.

 

Coube ao bebê Bernardino Sena ficar na casa do fazendeiro Teodoro.

 

É desse primeiro período de sua vida que Bernardino Sena guarda as lembranças mais dolorosas. Como o dia em que foi seviciado por um dos filhos de Teodoro. Cena terrível, que, ainda hoje, quando meu pai se lembra, o faz chorar. Está descrita no início do romance que há 20 anos vinha escrevendo (“Lá seremos felizes”), baseado na vida do meu pai, e que será publicado em 2015.

 

Para que o leitor compreenda por que dei o título “Choro por ti, Belterra!” à série de artigos que publicarei neste espaço, transcreverei na próxima coluna trechos do referido romance, que se am durante o longo período (10 anos!) em que o menino “Lázaro” (como Bernardino é chamado no livro) esteve separado de sua mãe Guida, até que mãe e filho, em 1944, em plena II Guerra Mundial, se reencontram. Esse reencontro de mãe e filho, que se deu em Belterra, também descreverei no próximo capítulo.

 

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FRASE DO DIA: “A imaginação é a memória enlouquecida” (Mário Quintana)

 

 

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