Çairé – expressão do folclore amazônico. (Por Vicente Salles) 5j2e5g
A cena de Gomes de Amorim é valorizada com a transcrição do canto do çairé, carregado por três mulheres, apareceu na obra do naturalista norte-americano Herbert H. Smith, Brazil the Amazons and the Coast, 1879, p. 394. -
O sairé, por vezes grafado çairé, é talvez a mais antiga expressão folclórica registrada no Baixo Amazonas. Conta história que nos leva aos primeiros cronistas e tem o registro em apreciável bibliografia.[1]
O sairé mostra um caso especial da interseção da lúdica negra no folclore amazônico. Fundamentalmente é canto e dança de certos grupos indígenas cristianizados no baixo Amazonas. Criado pelos missionários, incorporou-se no folclore regional.
O Padre João Daniel, em meados do séc. XVIII, na crônica Tesouro descoberto no Máximo Rio Amazonas, vol. I, p. 214/5, fez longa e minuciosa descrição. Nessa descrição já mostra notável confluência da cultura europeia, indígena e africana. Em especial a ação do missionário jesuíta na imposição do modelo europeu de cultura. Acrescenta uma particularidade que não foi notada por outros cronistas. Diz tratar-se de dança particular dos meninos, já que estes, como os velhos, não participavam da dança dos adultos. Homens adultos só participavam como tamborileiros:
"Os menores meninos e meninas têm sua dança particular, a que chamam sairé, em que regularmente não entram homens mais do que os tamburileiros, e ainda esses não estão metidos nas danças, mas estão de fora dando o como com o tamboril; e o tom, e pé da cantiga, a que responde a chusma, com advertência que os meninos vão em diverso sairé das meninas, e não misturados os de um com os de outro sexo. Consiste o sairé em ua boa quantidade de meninos todos em fileira atrás um dos outros, com as mãos nos ombros dos que lhe ficam adiante, em 3, 4 ou mais fileiras: e na vanguarda ainda um menino, se a dança é de ascânios, [machos] dos mais altos, ou menina, quando o sairé é de hembras [fêmeas] das mais taludas, pegando com ambas as mãos na base de um meio arco, o qual em várias travessas está enfeitado com algodão, flores, e outras curiosidades, e no remate em cima prende ua comprida fita que salvando por cima das cabeças de toda a chusma, vai rematar a outro, ou outra, que na retaguarda lhe pega, e a puxa de quando em quando para trás, e logo laxa para diante, conforme o como da primeira, que já levanta o sairé, e já o abaixa, já o inclina para diante, agora para trás, e agora para as bandas: e a cada movimento do sairé dão um o para diante, e logo outro para trás, acompanhado das vozes até, ou cansarem, ou os tamburileiros de fora pararem com o toque do tamboril. Nas missões, em que ainda conservam o sairé, o fazem já com mais galantaria, porque o ornam e adornam com o enfeite de boas fitas de diversas cores, e lindas plumagens, espelhos e vários adornos; e ao seu como entoam e cantam devotas cantigas, ou aos Sanctos, ou em abono dos juízes da festa, que alguas vezes vão no couce da procissão muito à grave, isto é trás do sairé, rodeados dos mordomos, e metidos entre as suas varas, porque pegando nas pontas uns dos outros fazem à roda um quadro ou quadrângulo, em que os juízes vão metidos entre varaes, especialmente quando nas festas saem, da igreja, e picam de roda para suas casas bem providas de mocororó para hospedarem o acompanhamento, que bem.o agradece com estas, e muitas outras danças, e festins, enquanto duram as vinhaças.
Ao tempo da experiência amazônica de Francisco Gomes de Amorim, quarta década do século XIX, eram vivas as imagens da Cabanagem, na velha Alenquer, palco e cenário da trama do drama O Cedro Vermelho. No cenário havia o çairé e a festa de São Tomé, que então se realizava numa pobre choupana à margem setentrional do lago Curumu. Amorim não só define o espaço como a época, o ano de 1837.
O çairé está presente nos dois dramas, O Cedro Vermelho e Ódio de raça, abrangendo, no mesmo espaço, dois universos culturais, o do índio e o do negro, já então convivendo na mesma sociedade opressora, que mal distinguia as peculiaridades de cada segmento.
Gomes de Amorim percebeu que ainda havia a convergência da cultura européia. Ele denomina "procissão do çairé" e a descrição inclui elementos que perduram como o acompanhamento por música instrumental (tambor e pífano), muitos foguetes e salvas de espingardas, vivas ao senhor São Tomé – o "santo dos tapuios" – e a procissão que tem início com saltar as fogueiras e a derrubada do mastro. Nas notas adicionais escreveu: "saltar as fogueiras é uso semelhante ao nosso em noites de Santo Antônio, S. João e S. Pedro. Os índios embrulham estas cerimônias..." [2]
Aqui entra a indagação de Luis Ismaelino Valente, estudioso da obra do poeta e dramaturgo português: por que Gomes de Amorim, tão detalhista nas reminiscências de sua vivência em Alenquer e no Curumu, não faz nenhuma referência ao cordão do marambiré dos negros do Pacoval, enquanto se derrama na descrição do çairé, manifestação folclórica hoje praticamente restrita à vila de Alter-do-Chão, em Santarém? Em resposta Ismaelino Valente lembra a tradição local que associa o marambiré ao nome de Maria Margarida Pereira Macambira, senhora de escravos célebre por sua crueldade. No Vocabulário crioulo, 2003, tento outra explicação.
Mas há um traço comum no çairé e no marambiré que é a permanência do lundu, o ponto alto da festa, sempre tocado ao som de violas, rabecas e tambores. E vem a longa cena do lundu, com a transcrição de versos que talvez tenham sido memorizados pelo jovem migrante português, terminando com o curioso "romance da Curupira".
O lazarista dom José Afonso de Morais Torres, 9º bispo do Pará (1844-1859), assistiu e descreveu o çairé nas freguesias de Boim, Pinhel e Aveiros, no Baixo Amazonas, em obra publicada em 1852. [3]
Foi porém o naturalista João Barbosa Rodrigues o autor do registro de maior repercussão,[4] já que nele introduziu cantos na língua geral e vulgarizou a grafia çairé, tomada de crônicas antigas. Na obra de Barbosa Rodrigues localizamos os primeiros registros da música.
A descrição de Barbosa Rodrigues foi reproduzida por Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do Folclores Brasileiro, com a grafia original – çairé – e farta bibliografia e ainda reproduz a imagem histórica pioneira de Herbert H. Smith,
O interesse por essa expressão folclórica chegou ao século XX. Renato Almeida introduziu o çairé na História da Música Brasileira na parte que denominou “Cantos Religiosos e Fetichistas”, associado às festas de São Tomé, instituído pelos missionários no seu trabalho de catequese dos indígenas e sua incorporação no modelo de sociedade colonial implantada pelos europeus.
Em 1941 Heitor Villa-Lobos produziu Três Cantos do Çairé, para coro feminino, antes portanto da edição da obra de Renato Almeida. Pouco depois, em 1944, o padre Carlos Borromeu notou que o sairé achava-se mais disseminado, indicando ocorrências em Primavera (Pombal), no Xingu e na vila do Conde, antiga aldeia de São João Batista de Murtigura, margem direita do Tocantins.[5] Assinalou:
“Os cânticos dos “sairés” em grande parte são puramente da língua e concepção indígena. Onde penetrou o “sairé” em regiões com populações misturadas adotaram-se costumes e palavras da ideologia africana” (sic).
Na vila do Conde anotou nos cânticos a mistura de palavras indígenas:
Ké-ké-ké, vem o pároco.
Vamos para a Igreja,
Cantar o Pai do Céu
Ké-ké-ké, vem o pároco.
Anotou que esses versos eram acompanhados de música atonal, “quer dizer indígena”.
Manuel Nunes Pereira produziu o estudo mais exaustivo, O sahiré e o marabaixo, Rio de Janeiro, 1955, e [2ª ed.] Recife, 1989, com mapa de localização dos dois folguedos no espaço amazônico e 8 melodias. Além de reproduzir o registro melódico de Barbosa Rodrigues, contribui para aumentar o repertório com registros de “O Jacaré e o Pirarucu” e o “Mandu Sarará”, ambos grafados 19/9/1949 por Manuel Godinho na comunidade negra do Curiaú, Amapá, além do lundu “A Saracura”. Obra fundamental para o estudo desta expressão do folclore amazônico.
O atual çairé de Alter-do-Chão, cercanias de Santarém, mostrado pela mídia, está corrompido pela indústria cultural, que reproduz na comunidade o modelo do boi de Parintins, AM.
É a festa dos marqueteiros da indústria cultural a serviço do turismo na Amazônia “exótica”.
Brasília, agosto de 2011
[1] Verbete no vol. Música e Músicos do Pará, 2ª ed., 2007, p. 294.
2 O Cedro Vermelho, nota 154, p. 443.
3 Itinerário das visitas de Dom José de Morais Torres, Belém, 1852, p. 61-2
[1] Poranduba amazonense ou Kochuyma-uara Porandub. Rio de Janeiro, 1891.
5 Ebner, Carlos Borromeu. O “Sairé” no Rio Mar, in Música Sacra, Petrópolis, ano 4, nº 3, mar. 1944, p. 43.