Batalhas judiciais que tramitaram na Comarca de Santarém no Brasil Imperial - A mulata Erimiteria (Parte IV) 551t3a
Com base em documentos do Centro de Documentação Histórica do Baixo Amazonas(CDHBA, da Universidade Federal do Oeste do Pará, o professor Rodrigo Caetano de Souza, em sua Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), mergulhou em centenas de processos do Fórum da Comarca de Santarém, do século XVIII, e de lá emergiu com vários casos emblemáticos de disputa judicial sobre propriedade e posse de escravos que, mesmo alforriados, tiveram que recorrer à justiça para garantir suas liberdades, ou de outros, que submeteram escravos aos rigores da lei imperial, como das escravas Thereza e Ana Maria, o mulato Severiano, a mulata menor de idade Erimiteria e o preto Gaspar.
Os casos das escravas Thereza e Ana Maria, do mulato Severiano e do preto Gaspar são tratados nas edições anteriores. Leia AQUI, AQUI e AQUI
A série sobre escravidão, alforria e justiça prossegue nesta edição com o caso da mulata Erimiteria, de 12 anos.
A menor Erimiteria esteve em vias de enfrentar um tribunal que punia com a morte na forca ações como propinar veneno ao senhor lhe causando a morte. Por pouco, porque a acusada, de acordo com as normas jurídicas da época, mediante a alforria condicional, ava a ser libertanda e não mais escrava. Por outro lado, o intento não se concluiu, uma vez que a vítima do veneno não foi nem o senhor nem um membro direto da família, mas uma visita que não é nomeada. Para além dessa possibilidade, o caso de Erimeteria oferece um leque de possibilidades para entender o impacto de uma alforria condicional na relação senhor e escravo.
O crime cometido por Erimiteria aconteceu antes de 1871, ou seja, considerando a condição de liberta sob cláusula, o senhor poderia revogar a alforria por ingratidão. Não há como inferir se tal iniciativa foi feita, porém essa possibilidade era real. O senhor poderia usar do artifício de prolongar a estadia da escravizada sob seu domínio por longos anos. Não se sabe o que aconteceu, a partir daqui, se Erimiteria foi julgada, se o senhor optou por castigá-la ou se a história se reduziu ao anúncio.
Pelo menos nos jornais consultados não há nenhuma referência nem ao crime, nem ao desfecho.
No Império, foram criadas leis com punições pesadas com alvos específicos, os escravos. Entre os crimes previstos no Código Penal brasileiro, alguns incorriam em penalidades altas, chegando à pena capital. Este era o caso do assassinato de senhores por parte de escravos.
A Regência Permanente em Nome do Imperador o Senhor D. Pedro Segundo faz saber a todos os súbditos do Império que a Assembleia Geral Legislativa Decretou, e Ella Sancionou a Lei seguinte:
Art. 1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa física a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a , feitor e às suas mulheres, que com eles viverem.
A notícia em questão foi publicada na seção “Acontecimento Notável” do Jornal o Monarchista Santareno.
No dia 27 de outubro próximo a mulatinha Erimiteria, de 12 anos de idade, propinou veneno a seus senhores, do qual ia sendo vítima o Sr. Clementino Bernardes de Macedo. A substância de que Ela se serviu foi o óxido rubro de mercúrio – veneno por todos conhecido por nós de joanes – e vidro moído, que lançou em uma bilha e pote de água. A providência quis o veneno fosse lançado em água para que não pudesse produzir seus malefícios efeitos; no entretanto uma pessoa familiar do Sr. Clementino, que tomou a maior dose, sofreu todos os sintomas pronunciados do envenenamento; e sendo de pronto acudida pelo Sr. Dr. Amaral, conseguiu zombar do intento malévolo dessa escrava que, criada com esmero e carinho, prodigalizando-se-lhe uma educação como se fosse filha, lhe estava prometida a sua liberdade e quase cumprida, quando atingisse a idade que pudesse gozar! Criou-se a víbora para inocular a peçonha no coração de quem a afagou!!! Jornal Monarchista Santareno, 2 de novembro de 1863
Imediatamente, é possível identificar que Erimiteria era mulata, estava com 12 anos e, ao que parece, sob uma alforria condicional, que lhe seria entregue assim que atingisse a idade que pudesse gozar. Entre o crime e a divulgação pelo jornal correram-se aproximadamente seis dias. Segundo narra o articulista, a citada era criada “com esmero e carinho, prodigalizando-se-lhe uma educação como se fosse filha”. Notadamente, pelo fato de ser um senhor no mundo dos senhores, as palavras de Clementino repercutidas pelo articulista não precisavam de provas, bastava terem sido ditas por ele para a automática legitimação. Vale dizer que Clementino era um dos poucos membros ativos do Partido Liberal em Santarém, isso talvez explique a pouca repercussão do caso em outros jornais de linha conservadora. Além disso, o caso mostra que a escravidão fazia parte da rotina de sujeitos de diferentes correntes políticas.
A revogação da alforria era um artifício legal baseado no título 63 do Livro IV do Código Filipino, que permitia a um senhor retirar a alforria de um liberto, caso este fosse ingrato.
Outro aspecto que salta aos olhos é a condição da alforria; ora, quem determinaria a idade ideal para o gozo de liberdade, Erimiteria? Notadamente não.
Diferente de Thereza Maria e Anna Maria, que eram libertas sob a condição da morte dos seus senhores, Erimiteria estava submetida a uma condição explicitamente subjetiva; afinal, com que idade um sujeito alcança as condições necessárias para assumir sua pessoa em liberdade? O senhor poderia prolongar o tempo de escravidão de Erimiteria por anos afora. Tal situação permite ver um aspecto da dinâmica da alforria; o uso da promessa de liberdade como forma de manter o usufruto do trabalho escravo metamorfoseado em trabalho de libertando por clausula. Para além do exercício individual de alforriar, o senhor Clementino lançava mão de um instrumento de controle e dominação capaz de lhe render alguns ganhos. Uma vez que, além de prender Erimiteria ao horizonte de expectativa de liberdade, poderia usar o mesmo instrumento com outros.
Esse caso somado a outros tantos pelo Brasil imperial vislumbram como a alforria fora um recurso de manutenção da escravidão. Todavia, como se mostrou no anúncio, algo deu errado nesse projeto. A resistência de Erimiteria mostrou sua insatisfação, pelo menos, suspeita-se que agiu contra um contexto que a ameaçava, que poderia ser essa alforria condicional sem norte definido.
Torna-se possível inferir que Erimiteria poderia ter razões mais fortes que a própria liberdade para tentar envenenar toda a família de Clementino, ou seja, o alvo não era apenas ele. Infere-se isso a partir dos meios utilizados; a solução preparada pela citada foi despejada em uma bilha e em um pote de água, dois objetos cuja função é receber água e que historicamente foram usados pelas famílias. Esses não eram instrumentos de uso particular dos senhores, mas de uso familiar, comunitário. Por que ela faria isso? Não se sabe. Todavia, “(...) Quando a negociação falhava, ou nem chegava a se realizar por intransigência senhorial ou impaciência escrava, abriam-se os caminhos da ruptura.”
Ruptura que podia se manifestar por meio de uma fuga, de sabotagens ou mesmo de forma direta, contra a vida do algoz.
Aqui se verifica uma evidência da vivência criativa do escravizado. Como Erimiteria chegou à conclusão de que era possível istrar uma solução química venenosa, misturá-la a vidro moído e pôr em risco a vida de seus algozes ? Tudo leva a crer que ela possuía contatos que lhe forneceram informação e os meios para esse intento. Porém, não apenas ofereceu o veneno, como também deu o antídoto. A mistura da solução com água, ao que tudo indica, em grande quantidade, tinha tudo para causar alguns danos, mas não para matar. A pessoa que bebeu a solução misturada a água, apesar dos danos, não faleceu. Vale lembrar que as funções domésticas de encher potes e bilhas de água cambiam ao escravo. A água bebida por toda família era buscada pelo escravizado às margens do rio Tapajós.
Nota da redação:
Os textos desta série foram adaptados para ser lido em narrativa jornalística para melhor compreensão dos leitores, mantendo-se o conteúdo originalmente produzido pelo autor.