Minha mãe e Nossa Senhora da Conceição 4y164
Paulo de Faria Pinto, um tipo de imagem de Nossa Senhora da Conceição com redoma em vidro, e a mãe dele, Iraci Faria Pinto, ainda jovem em Santarém - Créditos: Montagem de fotos de Rodrigo Reis, Pinterest e arquivo pessoal
No dia 28 de outubro mamãe [ Iraci Faria Pinto ] teria feito 95 anos. Ela faleceu há dez anos no dia 25 de outubro, 3 dias antes do seu aniversário de vida. E foi no dia 25 de um outubro de 1947, aos 19 anos, que casou com nosso pai, Elias Pinto, na Igreja da Conceição, em Santarém, onde se conheceram. Papai era mariano da congregação católica, e mamãe acabara de sair de 9 anos do internato do colégio de freiras Santa Clara.
A primeira imagem que tenho de minha mãe, eu devia ter 3 ou 4 anos, morávamos ao lado da Igreja de Santana, em Belém. Quando ela ia sair, me levavam para o banho; era uma forma de me entreter, para que conseguisse ir para a rua, pois eu era muito agarrado a ela. Lembro de procurá-la, não achar e abrir o berreiro, que só parava com o sono ou quando ela voltava, com algum doce para mim.
Essa é uma imagem bem nítida, mas eu não lembro nessas ocasiões do rosto de mamãe. Só da sua ausência. Ele só se faz presente em minha memória quando morávamos na casa seguinte, devia ser em 1969 ou 1970. Era na antiga rua de Cintra, na Cidade Velha. Um casarão antigo, que ainda existe. Como em todo bairro, o porão tinha muita aranha caranguejeira.
Lembro de uma noite, que acordei com a mamãe ao meu lado, na cama, com uma vela acesa na mão fazendo o sinal de silêncio. Essa é a primeira expressão que lembro dela. Um rosto branco e suave, bonito, cabelos pretos, curtos e armados. Era a minha doce mãe.
Olho pra ela, e sigo o seu olhar que sai dos meus olhos e vai pro meu peito. Em cima do lençol branco tem uma aranha enorme. Antes que eu pudesse me assustar, ela arranca o lençol, fazendo uma trouxa com a aranha dentro e desaparece com o pano e o monstro peçonhento. Depois ela me pegou no colo, e eu não queria nunca mais sair dali, daquele lugar seguro. Me sentia protegido ao seu lado. E ei a ir com ela a todos os lugares. Sou o caçula e vivi muitos mimos desse privilégio.
E assim ei a ser uma espécie de mascote ao seu lado. Lembro que todos brincavam comigo, que a minha mãe ia embora, ia me deixar. Aquilo pra mim era um terror.
Uma vez em meio a esse trolar, eu abri o choro e ela veio me pegar no colo e me perguntou: “Quando eu ficar bem velhinha você será a minha bengala?” Respondi sem pestanejar “sim, serei”. E fiquei imaginando como seria ser uma bengala. Levei ao pé da letra por longo tempo.
Infelizmente, isso não aconteceu, eu não cumpri a promessa. Os últimos 20 anos de sua vida, eu vivi em São Paulo. Nos últimos 7 que ela viveu, foi acometida de Alzheimer, numa crescente demência. Eu não consegui ser sua bengala, mas ela foi amparada por meus irmãos, especialmente pelo Lúcio e o Pedro.
Eu a via a cada ano, nas férias. Era sempre uma tristeza muito grande, vê-la naquela situação.
Ela morreu engasgada por um pão, teve uma parada respiratória. Me lembrou a personagem Blimunda, do livro “Memorial do Convento”, do José Saramago, em que a personagem, antes de comer o pão, pela manhã, via as pessoas por dentro, suas doenças...
Papai, prefeito de Santarém, fora cassado em 1967, e a família perdeu todos os bens. amos por várias mudanças por várias casas, cada vez menores. Sem entender nada, gostava de embalar as coisas, fazer as malas, ear de caminhão e ter uma casa nova. Acho que isso me fez andarilho, cigano, nômade nessa vida.
Eu herdei de minha mãe a religiosidade, o sincretismo religioso que a seguiu desde que eu nasci, de 10 meses, em tempos difíceis. N. S. da Conceição se tornou presente em toda a minha infância e adolescência. Ganhei de mamãe uma imagem que ficava no seu oratório e depois, na adolescência, na minha cabeceira. Era de vidro com luz dentro, uma lâmpada. Eu dormia vendo aquela luz, as estrelas do seu manto. Quando eu fiz 18 anos, ela se quebrou misteriosamente.
Depois de sua morte, eu ganhei de um amigo, em São Paulo, um oratório mineiro grande, com uma imagem, e quando vi era a Nossa Senhora da Conceição de uns 70 centímetros. Eu nunca havia falado nada sobre a imagem.
Quando eu decidi vir pra Belém, há menos de um ano, eu estava morando um ano antes numa chácara em Jundiaí, com meus cachorros e gatos, tentando me recuperar de um cansaço, um adoecimento, uma forte depressão, depois de 20 anos morando e trabalhando na Cracolândia, onde tive a experiência mais humana da minha vida.
Durante a eleição ao governo do Estado, em 2022, o Fernando Haddad e o Tarcísio de Freitas ficaram para o segundo turno. Eu sabia que o Tarcísio ganharia, pois no interior o conservadorismo namorava com o fascismo. No dia seguinte ao resultado do 1º. turno, os meus cachorros acordaram fazendo o maior barulho, aram embaixo do meu oratório e derrubaram a N. S. da Conceição, que se espatifou. Acordei assustado com o barulho e com aquela cena. Decido ali ar os 4 anos do mandado do Tarcísio, em Belém. E me dedicar à escrita.
Um mês depois estava chegando em Belém, no dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. E vim morar em Carananduba, ao lado da praça, onde tem a igreja da Conceição. Nada planejado, tudo ao acaso. Se é que existe o acaso.
E aqui estou morando com meus 13 cachorros e 8 gatos, que trouxe numa van de São Paulo, numa aventura única, em 3 mil quilômetros, sem sair de dentro do carro, por medo que eles fugissem. Somente o motorista saía para se alimentar, ir ao banheiro e dormir. Objeto de um livro que escrevo desse deserto, dessa caverna que vivi na estrada.
Infelizmente atrasei dez anos pra tomar essa decisão, e hoje já não tenho o lado mais doce de Belém, que era minha mãe. Uma mulher que viveu muita provação e lidou com isso com total resiliência. Mas sinto-a próxima e me protegendo sempre, como foi aquela vez com a aranha. Falta o seu colo.
No momento, não tenho a imagem da Nossa Senhora da Conceição e a igreja da praça, ao lado de casa está em reforma. Um dia ela chegará... Seu lugar está reservado no centro do meu oratório, na fé de minhas orações.
Estou acostumado a construir sonhos na ausência. E cultivo a resiliência, na matéria altruísta que me constitui. Aprendi, caminhando pela vida, que na luz tudo brilha. E que na escuridão até a nossa sombra some, finda. Assim, aprendi a tatuar poesia nas feridas.
Parabéns, mamãe. Que nossa Senhora da Conceição esteja ao seu lado sempre, ela está entre nós.