Memória: Um domingo na Santarém de 1952 b5kz
Antigo trapiche de Santarém, no início da década de 1950 -
Créditos: Arquivo/Acervo Sidney Canto
O “Diálogo com um visitante”, escrito sob o pseudônimo de Chris e publicado na edição nº 9 do jornal O Baixo Amazonas, é um retrato bem-humorado e realista de Santarém no ano de 1952. A partir de um São Raimundo x São Francisco, o Rai-Fran, clássico do futebol, ele mostra como era a vida naquela cidade acanhada. Mas, a rigor, mudou muito de lá para cá?
Domingo, manhã amena, céu límpido, pouca ventilação, perguntei-me: o que fazer?
Vai à missa.
Depois?
A não ser o ambiente mesclado de álcool e fumo dos salões de snooker [sinuca em inglês] dos botequins, só as praias, que, aliás, por todos os motivos, é o lugar mais aconselhável.
E depois?
Almoças, dormes a tua sesta até as 15 horas, depois apanhas um carro, dás umas voltas pela cidade, tomas umas cervejas...
E depois?
Depois! Ah! Hoje há jogo no Estádio Municipal; e que jogão, e entre os maiorais do futebol da cidade – S. Francisco x S. Raimundo.
Ótimo. Então, lá nos encontraremos.
Feito. Até.
Até.
Às 16 horas, no Estádio Municipal.
Olá, já por aqui?
É verdade; segui os teus conselhos, saiu tudo OK. Que praias bonitas, que garotas formidáveis. As ruas é que são maltratadas parece que os prefeitos daqui não lhes têm prestado a menor assistência.
Não só as ruas, mas quase todos os problemas que se prendem ao conforto público.
Que tristeza; é uma cidade bem grande e bonita... vamos entrar?
Dê-me duas entradas.
Está curto, meu caro amigo!
Curto por quê? Não custa CINCO CRUZEIROS cada uma?
Não, senhor! OITO CRUZEIROS.
Mas por quê?
O senhor não sabe que o jogo hoje é de reconciliação entre os dois grandes que estavam brigados há quase cinco meses, e este será o jogo para ratearem os laços de cordialidade esportiva?!
Formidável!!! Sendo assim, vale mais de Cr$ 8,00 porque vamos ver uma partida de futebol 100%.
Bonito campo; que arquibancadas confortáveis. Cimento armado, não
É, são de cimento armado.
Vem cá; esta parte aqui avançada não prejudica a visão dos assistentes das extremidades? Para que é isto?
Isto é para as autoridades.
Mas por quê? As autoridades daqui são míopes que precisam estar mais à frente que os outros?
Não; é que o construtor do Estádio achou que estas deviam ficar em plano mais destacado.
Muito bem: só sendo mesmo. Mas sim, são 16,30 e não começa. O BIG jogo?
Parece que está faltando ÁRBITRO.
Mas o juiz não foi escolhido pela LIGA?
Que Liga. A Liga daqui não liga. Os seus organizadores trabalharam demais, não concluíram nada; cansaram e consta-me que já largaram ou vão largar.
Graças, já agarram um para apitar.
É, para apitar mesmo, porque para ser juiz de futebol é preciso conhecer bastante regra, ter prática e muito jeito, porque não é qualquer mal-enjambrado que se desincumbe de mediador de um grande jogo como o de hoje. Olha, este bando de camisa azul, é o S. Francisco, “o maioral”, e o outro, que tem o uniforme parecido com o do Vasco, é o S. Raimundo. Já escolheram o campo, 16,40 (ao trilar do apito).
Que saída boa. Ataca o S. Raimundo. Este rapaz joga bem! Como é o nome dele?
DêDê. Upa; foul.
Quem é este zagueiro?
É o Manoel Luiz.
Ele joga forte, não é?
É.
Vê o rapaz como ficou todo ferido.
O encontro foi casual, ele feriu-se nas pedras.
Nas pedras!? E há pedras no campo?
Repara: há grama, areia e pedras.
Mas por que tanta areia e pedras?
Isto precisa de muito tempo para explicar. Olha como está sangrando.
E a ambulância?
Que ambulância... Isto aqui é artigo de luxo, quando um atleta se machuca como aconteceu com este, ele que se arranje. Os companheiros de clube é que acodem. Ministram os curativos de emergência com o medicamento melhor que se encontra no campo: “gelo”. Ataduras são pedaços de fraldas de camisa de torcedores ranzinzas e... abnegados. Goal [gol] do S. Francisco. Um a zero.
Que bonito gol.
Saída, ataque do S. Francisco; 2º goal. Nova saída, outra investida do S. Francisco e 3º goal.
Eh! Este tal S. Raimundo não aguenta.
É, eles estão jogando mal; aliás, eles têm melhor padrão de jogo. Não sei o que há com eles hoje; estão quase desarticulados.
O juiz está apitando bem.
Upa! foul [falta] do S. Raimundo. O juiz marcou. Confusão no campo; parece que o juiz expulsou alguém.
Expulsou mesmo. Ele não quer sair.
É do S. Francisco, não é?
É. Então não sai.
Mas não sai?
Não.
E a polícia?
Que polícia!
É verdade, ainda não vi nenhum policial no campo. Por quê? Não há policial nesta terra?
Há. Polícia há, meu velho. Acontece que, além de ser deficiente para vigilância total da cidade, que não é pequena, os organizadores do prélio não requisitaram seus serviços. Segundo ouvi aquele senhor gordo, se “slack” estar dizendo.
E agora, o que se faz, vamos embora?
Não, vamos esperar; pode ser que eles cheguem a uma conclusão.
Eh! bolo na bilheteria; o pessoal quer devolução do dinheiro.
Ora! Por certo; apenas 20 minutos de jogo.
Olha, tu disseste que não havia polícia. Está aí.
É; estão apreendendo a renda.
E o que eles fazem destas “gaitas”?
São para o Asilo.
E os promotores do match, o big jogo de confraternização?
Ah! os clubes daqui são ricos, não fazem caso de dinheiro; jogam por jogar.
Ótimo. Esta vai para o meu caderno.
Eh! o juiz está apitando mais que “canário belga”.
Não resolve. Nem os jogadores, nem os dirigentes dos clubes, nem o público em geral se apercebe do “trilar do apito”.
É, estou vendo que não adianta nós ficarmos aqui; a polícia já levou a renda, inclusive os Cr$ 16,00.
O rapaz não saiu e nem o jogo prossegue.
Ele ia sair, não viste? Chegou a tirar a camisa; mas os diretores do clube o impediram.
É por estas e outras que há vários elementos indisciplinados nos esportes.
Isto é em toda parte.
Sim, em toda parte e de um modo geral.
Ouve: o juiz ainda está apitando, já agora não parece canário belga, mas sim uma triste coruja.
Coitado... fica de beiço inchado e ninguém dá a menor importância ao “trilar do apito”.
Bem, vais mesmo ao cinema?
Vou.
Então, até por lá.
Até.
LEIA EDIÇÕES ANTERIORES DE MEMÓRIA DE SANTARÉM CLICANDO AQUI