Um submarino em Santarém 761p
Durante vários anos, a partir de 1955, quando vim com a minha família para Belém, eu ava pelo menos três meses do ano em Santarém. Em duas ou em todas as três férias escolares e no intermédio dessas viagens. Convivia com linguagens e hábitos distintos dos da capital, evidências de uma cultura local autônoma. E com as pessoas, incluindo a maioria dos membros da minha família, por parte de pai e de mãe, que ainda moravam na "pérola do Tapajós".
Santarém era uma cidade adoravelmente pequena, com tudo de bom e de ruim que essa condição provinciana proporciona ou causa. Um dos melhores programas era a conversa de turma, sem imposição de tempo. Ela fluía com variedade temática e interesse coletivo. Abusava-se da imaginação, uma oportunidade para as brincadeiras e as mentiras.
Certa vez, acertei com alguns parceiros de inventarmos uma história. De que um submarino ia emergir em frente ao trapiche, com dia e hora já agendadas. Um submarino? Os que não participavam da trama não acreditaram. Mas para reforçar a invenção, disse que tinha lido sobre o assunto na revista americana, editada no Brasil.
A revista era dona da maior tiragem do planeta, a Seleções do Reader's Digest. Foi o bastante para por fim à diáfana névoa de descrença. Pelo menos a de um primo, um pouco mais jovem do que eu, filho da irmã da minha mãe, a pessoa mais crédula que encontrei na vida (não vou citar seu nome porque ele pode não gostar, se é que me lê, e eu não pretendo desgostá-lo com essa inocente rememoração).
No dia indicado, um pouco antes das cinco da tarde (a las cinco en punto de la tarde, do famoso poema de Federico García Lorca), ele começou os preparativos para a abordagem. Sua mãe estranhou e cobrou uma explicação. Ele disse o que ia fazer: ver o submarino em frente ao trapiche.
A titia, que usava a língua como um látego ferino, debochou: "Meu filho, isso é invenção. Onde já se viu um submarino aparecer por aqui? Estão querendo te gozar". Ao que Flávio, circunspecto, retrucou: "Mas foi o Lúcio que disse. Ele leu nas Seleções". E lá estava o meu querido primo, às cinco, sentado no trapiche à espera do submarino.
A misteriosa embarcação não deu o ar da sua graça, mas a canalha saiu do esconderijo e foi zoar no ouvido do Flávio. Olímpico e seguro de si, meu primo só saiu de onde estava, já na escuridão, quando os moleques se foram, sem parar de rir.
Conto essa história para lembrar do respeito que se tinha pela revista americana em um lugar tão distante da sua base de ação - e tão pequeno. Armado dos exemplares dela que encontrava nas casas amigas e de O Cruzeiro, retirado da casa do pai do meu primo, que representava a revista de Assis Chateaubriabnd em Santarém (e era também agente da Cruzeiro do Sul, empresa de aviação que nada tinha a ver com a revista homônima do perigoso Chatô), eu subia na árvore no quintal da casa dos tios Dácio e Aida (minha tia), meu lugar de hospedagem. Protegido das interrupções, me dedicava à leitura. Era o intelectual da corja.
No meu interminável vira e revira de papéis, encontrei um dos muitos exemplares de Seleções que ainda possuo, a maioria da época da Segunda Guerra Mundial, vários no original em inglês. Esta que peguei é de março de 1974. Revista mensal que reunia "o melhor das melhores revistas e livros" (pelo menos para os interesses de Tio Sam), como se anunciava, destacando seus mais de 30 milhões de exemplares em 13 idiomas (inclusive em sueco, holandês, dinamarquês, japonês e chinês, já que, numa época que ainda era ilustrada, o imperialismo americano dava destaque à hegemonia cultural).
Apesar de porta-voz dos Estados Unidos na guerra fria, Seleções era perfeitamente legível, embora já começasse a declinar e perder a condição de agente ideológica. A revista deixara de ser impressa em português no Brasil, se limitando a Portugal, de onde despachava seus exemplares. Nesse ano, o poeta e tradutor brasileiro Ivo Barroso era o seu redator-chefe e o jornalista e escritor Ruy Castro o seu redator executivo. Ambos estão hoje na Academia Brasileira de Letras.
Outro intelectual brasileiro que participou da redação lisboeta de Seleções foi o excelente escritor goiano José J, Veiga, autor de uma das melhores novelas da literatura nacional, A Hora dos Ruminantes, que recomendo para os leitores. Sem submarino pelo meio.