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Memória de Santarém : A revolta dos colonos 828c

Lúcio Flávio Pinto - 16/04/2023

Ex-prefeito Elias Pinto ( ao centro), ao receber o então vice-presidente João Goulart( à direita) - Créditos: Arquivo /Portal OESTADONET

Folha Vespertina de 25 de novembro de 1957 abriu manchete na primeira página para noticiar que um complô armado para prender o governador Magalhães Barata em Santarém fracassara. Nos dias seguintes, tanto o vespertino quanto o matutino do grupo, da Folha do Norte, o principal jornal do Pará naquele momento, publicaram várias matérias sobre o plano subversivo que colonos do planalto santareno teriam concebido para se apossar do poder no município e desencadear uma “revolução” de amplitude nacional.


As denúncias eram semeadas em terreno fértil: Santarém fora a base principal de oficiais da Aeronáutica que se amotinaram no ano anterior. O movimento visava a deposição do recém-eleito presidente da república, Juscelino Kubitscheck, chefiado pelo então major (e futuro brigadeiro) Haroldo Veloso. O elo parecia vivo, na forma do destacamento que a Aeronáutica mantinha em Santarém, a única tropa federal permanente na região, e que estaria ao lado dos colonos.


O líder da revolta seria um ex-oficial da Aeronáutica, tenente Hilton Bergman, expulso por ser comunista, e que se ocultava atrás da pessoa do colono José Gonçalves dos Pais. Mas como a história não era exatamente essa, logo o assunto foi esquecido. E desapareceu.
 

A rebelião dos colonos
 

Segundo as primeiras notícias, que viriam a se revelar sensacionalistas, os colonos da região de Mojuí dos Campos, ao sul de Santarém (90% deles nordestinos, sobretudo cearenses), teriam decidido prender o governador quando ele chegasse à cidade, na sexta-feira, dia 22, desencadeando a partir daí uma rebelião por toda cidade. O objetivo não era claro, mas a motivação seria a revolta dos lavradores.


Eles enfrentavam quatro meses de estiagem no planalto: já haviam perdido a safra e não dispunham de água sequer para suas necessidades mais elementares. Não receberam a ajuda oficial que pediram e desesperavam. Um agitador qualquer devia estar usando essa situação para levantar as colônias para atos políticos e de violência.


Com essa diretriz, dada pessoalmente pelo governador, o Estado fretou um avião da Paraense Transportes Aéreos e embarcou nele tropa de combate fortemente embalada da Polícia Militar, comandada pelo delegado da Ordem Política e Social, Rui Silva. A força desembarcou em Santarém em pleno domingo, de surpresa.


A ordem era rapidamente identificar os líderes do movimento e prendê-los até chegar ao cabeça da agitação, que seria o deputado Elias Ribeiro Pinto, líder do Partido Trabalhista Brasileiro na Assembleia Legislativa, no seu primeiro mandato parlamentar como representante de Santarém. Era o que diziam os informes do DOPS, supostamente corroborados pelo Serviço Secreto do Exército.


Os correligionários e amigos mais próximos do deputado foram logo chamados a depor perante o delegado, que montou seu QG na velha delegacia local, na esquina da travessa dos Mártires, ao lado da igreja-matriz de Nossa Senhora da Conceição. Mas tanto Moacyr Miranda, presidente do PTB municipal, quanto Vigico Castro e Norberto Cunha negaram saber de qualquer plano subversivo dos colonos ou da ligação do deputado. E ninguém mais soube fornecer qualquer informação a respeito, embora cinco colonos tivessem sido detidos incomunicáveis por quase um dia inteiro, depois de serem recolhidos por tropa armada em suas casas, nas colônias de Mojuí dos Campos, Moju, Poço Bra nco e São José, que aram a ser visitadas diariamente pelos militares da PM.

 

O complô para prender o governador
 

Ainda em Belém, quando procurado pela imprensa para se manifestar sobre a denúncia e a iniciativa do governo, que já despachara a tropa (e, segundo a Folha do Norte, colocara policiais para acompanhar os os do líder santareno), o deputado Elias Pinto disse que as informações fornecidas eram mentirosas e que a situação nas colônias do município era completamente diferente da apresentada.
 

Sugeriu ao governador que fizesse “um giro pelas colônias de Santarém”. Assim, constataria pessoalmente “a insatisfação reinante entre os que trabalham a terra” com a atuação do prefeito Armando Lages Nadler, que “tem falhado redondamente e continuará falhando até o último dia de sua desastrada istração”.

 

O deputado considerava “profundamente grotesco a polícia entulhar um avião de soldados e armamentos e, sigilosamente, deixar Belém em busca dos que, diziam, queriam dias antes prender o chefe do Executivo paraense”. Elias observava com ironia, porém, que Barata “ou pelo aeroporto de Santarém, cumprimentou seus amigos, deitou prosa e não foi molestado nem pelas moscas, quanto mais pelos fantasmagóricos rebeldes da cidade que o major Veloso cantou em prosa e verso”. E arrematou: “Antes, a polícia protegera o governador por telegrama e depois resolvera guardar a ausência do general com tropas embaladas. Francamente!”

 

O mesmo ponto de vista foi partilhado pelo advogado santareno Cléo Bernardo, presidente do Partido Socialista Brasileiro no Pará. De Belém, onde foi ouvido, ele disse que a revolta dos colonos tinha uma causa determinada: o prefeito Nadler, “que nada tem feito e há sido mais uma desgraça para Santarém”. Por isso, as estradas de o às colônias estavam intransitáveis, impedindo o escoamento dos seus produtos, e, sem água, eles estavam “bebendo lama”.

 

Apesar da movimentação ostensiva de tropa durante vários dias, indo e voltando das colônias, prendendo colonos e submetendo-os a interrogatórios, mantendo-os incomunicáveis por várias horas, as palavras dos dois políticos acabaram se confirmando.

 

Ao retornar de uma viagem a Juruti e Óbidos, o governador decidiu fazer uma parada rápida no aeroporto de Santarém apenas para manifestar seu desagrado em relação ao correligionário, o prefeito Armando Nadler. Mesmo os integrantes do PSD (Partido Social Democrático) estavam insatisfeitos com sua gestão. Garantiam que a oposição venceria a eleição, marcada para o ano seguinte, de 1958, se faturasse sobre o péssimo desempenho da prefeitura, que desagradava a todos.
 

 

Os colonos sem água

 

Dentre os mais insatisfeitos, estavam os colonos. Dois dias antes da agem do governador, eles cobraram providências para a reparação das estradas e para o fornecimento de água ao planalto. Apesar de estar numa das regiões com mais chuvas do planeta e com a maior bacia hidrográfica, os emigrantes do Nordeste estavam convivendo com o velho problema de sua terra de origem: a falta de chuva, que já durava quatro meses.


Primeiro o prefeito alegou que o único caminhão de que dispunha precisava ser usado na cidade para a coleta de lixo.  Mandou os colonos irem buscar ajuda no DER (Departamento de Estradas de Rodagem), que condicionou o atendimento a uma ordem superior. O caminhão acabou sendo enviado para a colônia, mas só os “baratistas” recebiam a água, transportada em grandes tambores.
 

Os demais ou não foram atendidos ou tinham que se sujeitar a favores dos adversários políticos, devendo-lhes a ajuda, o que continuou a causar revolta. Como as frutas, legumes e grãos apodreciam nos depósitos, e só havia lama para a maioria, a indignação se tornou maior ainda.

 

Alguém aproveitou esse ambiente para engendrar a história do complô contra o governador, que, mesmo manipulada, apresentava certa verossimilhança. O ato político se tornou explícito quando, por ordem de Belém, a polícia começou a prender exatamente os colonos que participaram das visitas à prefeitura e ao DER e subscreveram um telegrama endereçado ao governador Magalhães Barata, pedindo sua intervenção em favor dos produtores do planalto. Não foi poupado nem Antônio Walfrido Pessoa, um ancião, com saúde precária, chefe de numerosa família na colônia.


O primeiro a ser preso foi quem primeiro assinou as manifestações por escrito, José Gonçalves de Pais. Como era paulista, que se estabelecera em Santarém três anos antes, parecia mais bem-sucedido que os demais e demonstrava um grau de informação maior, foi tomado como suspeito. A suspeita cresceu quando o jornalista Raimundo Cavaleiro de Macedo, enviado pela Folha do Norte para uma série de reportagens sobre “a revolta”, entendeu que ele podia ser o tenente Hilton Berg man. O repórter conheceu pessoalmente o militar, que fugira da prisão, e considerou notável a semelhança do colono de Santarém com ele. Devia ser o subversivo por trás das manifestações.
 

O complô que não havia

 

Apesar das aparências, Gonçalves não era Bergman e o “complô” não era um “complô”. Era apenas a manifestação de uma antiga, profunda e justificada insatisfação do homem do campo, geralmente mal interpretado pelo homem da cidade, mesmo quando procura o amparo da lei e das autoridades, como o episódio da guerra de Canudos bem demonstrou, na mais dramática dessas histórias. Tradição da qual a revolta de Santarém era uma reedição, em escala menor, infelizmente, sem um novo Euclides da Cunha para relatá-la.


Através do advogado Inácio Ubirajara Bentes, o deputado Elias Pinto requereu habeas corpus à justiça em Santarém, em favor dos cinco lavradores detidos pela polícia, e a investida refluiu. As coisas voltaram a se normalizar nas colônias, que retornaram ao esquecimento. Uma década depois, Santarém reocuparia as atenções da opinião pública nacional, com uma nova história de conflitos e alguns dos mesmos personagens. Nem por isso recebendo a atenção para a solução dos seus problemas.

 

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