Gov cop 30


A Amazônia que era para ser e não foi 1om3o

Lúcio Flávio Pinto - 22/09/2022

Este é o terceiro artigo da série em que volto à Amazônia do final dos anos 1950, quando houve uma interrupção da sua continuidade histórica e a região ingressou em uma nova etapa, definitiva e irremediável, a partir de uma intervenção externa que mudou completamente a sua configuração.

 

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Os 30 participantes do XVIII Congresso Internacional de Geografia, realizado no Brasil, em 1956, que escolheram a excursão 8, dentre as oferecidas pelos organizadores do encontro, optaram por visitar a Amazônia. A maioria dos excursionistas era da Europa. Entre representantes das superpotências, surpreendentemente, os russos ganhavam dos americanos por 5 a 4.

 

Examinado a partir de hoje, o roteiro impressiona pela duração da viagem, de 21 dias (três semanas completas), e pelo fato de que a predominância do meio de transporte era pelo rio, num navio que se transformou em “hotel fluvial”. Sem pressa, conversando e observando a paisagem, os excursionistas fizeram algo que, hoje, dificilmente seria apreciado.

 

O eixo da excursão foi a calha do rio Amazonas. Os geógrafos e professores de geografia desceram nas principais cidades existentes entre Belém e Manaus, penetrando em “terra-firme” (como escreve Lúcio de Castro Soares) até onde se implantavam atividades humanas pioneiras. Algumas, em ligação direta e franca com uma base já estabelecida no curso do próprio rio, como indústrias de beneficiamento de juta e serrarias, e outras que faziam a troca da base econômica do extrativismo, que era vegetal e começava a se tornar mineral com a exploração das jazidas de manganês do Amapá.

 

Um pressuposto do roteiro era de que essas novas atividades promoveriam um salto histórico, mas não tão extenso que acabasse resultando num vácuo, intransponível pelos nativos, além de sua capacidade de compreensão e domínio. Tradição e modernidade, conservação e inovação haveriam de conviver. Os cientistas veriam os danos causados pela exploração intensa de um solo fraco para propor correções e ajustes, não para ampliar a ofensiva dessa destrutiva agricultura migratória – como, infelizmente, acabaria ocorrendo.

 

Seria pedagógica a repetição desse roteiro. Quase 70 anos depois, o eixo da colonização deixou de ser fluvial, tornando-se rodoviário, multiplicando o alcance daquelas pequenas vias de penetração limitada que os excursionistas puderam ver. Tudo o que se fazia para incrementar e racionalizar a exploração das “terras-pretas” e das várzeas foi abandonado, ou porque não deu certo, ou porque não teve continuidade. Ou porque não interessou aos novos colonizadores.

 

No Maicuru, à margem do rio Amazonas, no Pará, os canais artificiais abertos pelo homem, através dos quais os sedimentos seriam levados para campos de deposição, de cuja colmatagem surgiria o solo mais rico do planeta, acabaram erodidos pelas águas do Amazonas, dando origem a uma baía, quase um estuário. A força da natureza atrapalhou a engenharia do homem. Já na várzea do Guamá, na área metropolitana de Belém, os experimentos do Instituto Agronômico do Norte (hoje Embrapa, depois de ter sido Ipean) ficaram nas prateleiras porque o que então se procurava não era mais a margem do rio, mas a beira da estrada.

 

Através dela houve um caótico avanço sobre a terra-firme, vista – pelo prisma da excursão – como um lugar a exigir uma aproximação lenta e atenta para não ser profanado, destruído. É pouco provável que qualquer dos geógrafos, entre os quais estava gente de fama, como o francês Francis Ruellan, imaginasse que nas sete décadas seguintes os agentes da ocupação da Amazônia viessem a desmatar 500 mil quilômetros quadrados de floresta nativa, justamente nas áreas mais altas, de intensa laterização, como puderam verificar em todas as suas viagens por terra. Para todos, o sentido da penetração seria a partir das várzeas, avançando cautelosamente para as “terras ignotas” do interior, agora em um salto, que deixou para trás a história, a geografia e a inteligência, como ocorreria a partir da década de 1960.

 

Como lixo deixado displicentemente, o excursionista dos nossos dias poderá ver as ruínas das indústrias que tentaram avançar no beneficiamento de matéria-prima local (ou aculturada na região, como a juta), e o descomo entre o horizonte mental e de expectativas da história regional e a régua-e-como impostos pelo “grande projeto” que veio de fora, virado para fora.

 

A futura hidrelétrica do Paredão, no Amapá, por exemplo, foi incluída no roteiro de 1956 por ser uma “importante usina hidrelétrica”, que então começava a ser construída. No entanto, toda a sua capacidade de geração representaria apenas 10% da potência de uma só das máquinas instaladas na hidrelétrica de Tucuruí, que tem 330 enormes turbinas (de 330 megawatts cada). O paralelismo permite estabelecer uma ordem de grandeza entre o que seria a evolução por dentro da Amazônia e o que significou sua ocupação a partir de fora, num modelo tipicamente colonial.

 

O roteiro é um guia da Amazônia que poderia ter sido, se tivesse continuado a dispor de algum grau de autonomia ou evoluído num ritmo menos intenso, e uma Amazônia que é, dependente, em seus esquemas vitais, do mundo exterior, que impõe uma marcação acelerada das atividades humanas.

 

Para geógrafos, acompanhar a excursão pode ter um efeito positivo: mostrar como a geografia perdeu a identidade com seu campo específico de estudo, o homem e a paisagem, ao procurar enriquecimentos na sociologia, na política ou na antropologia. A interdisciplinaridade permitiu o adensamento de conteúdo humano de uma ciência que se tornava insípida e asséptica enquanto mera reprodução da natureza. Mas, em exagero reducionista, empobreceu a perspectiva propriamente geográfica dos seus praticantes, transformando sua ciência numa extensão daquelas que deveriam complementá-la.

 

A Amazônia, particularmente, ganharia se os geógrafos voltassem a cuidar melhor das estruturas físicas do globo, não como elementos estáticos ou isolados, mas como uma dimensão própria do nosso mundo. Todos podemos ganhar com a leitura do roteiro preparado por Lúcio de Castro Soares, ainda mais se a partir dele uma excursão tão inteligente fizesse o visitante encarar a verdadeira Amazônia.

 

No fecho do seu livro, Soares apresentou uma “breve notícia da excursão”, que será o tema do próximo artigo.




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