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O massacre de Santarém, em 1968, nas memórias de um juiz de direito 4h135i

Lúcio Flávio Pinto - 25/10/2020

Manoel de Christo Alves, desembargador do TJPA falecido em maio de 2020 - Créditos: TJPA/Divulgação

Em mais de meio século de carreira, que o levou de pretor, em 1951, depois juiz, itido por concurso, ando por várias comarcas, a desembargador e presidente do Tribunal de Justiça do Pará, em 1995 (até 1997), Manoel de Christo Alves declarou como “o caso mais relevante” que lhe foi submetido o de Elias Pinto, em 1968. A decisão custou ao magistrado, que morreu neste ano, de covid, “tanta insegurança, a mim, pessoalmente, e à minha família.

 

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Na sua autobiografia, também lançada neste ano (Recortes do ado de um juiz na Amazônia, de 350 páginas), Christo Alves relata o caso, envolvendo o então prefeito de Santarém, Elias Pinto, político habilidoso e carismático”, que vencera a eleição de 1966 pelo partido da oposição, o MDB, por ampla vantagem de votos, “arrasadoramente”, lembra o desembargador, o representante da situação, Ubaldo Correa, da Arena. No entanto, ficara minoritário (por 9 a 2) na câmara municipal.

 

“Iniciando o seu mandato, cedo os inconformados submeteram-no a um processo de cassação pela Câmara de Vereadores, por alegadas irregularidades”, observa Christo, lembrando o que lhe dissera um amigo, “o saudoso dr, Lauzid, com a experiência de ter servido a vários governos, como Secretário de Finanças do Estado, que irregularidades existem em qualquer governo”, devendo-se distinguir se cometidas “de boa-fé ou má fé”.

 

A comissão de vereadores incumbida do processo mandou citar o prefeito e, como não o encontrasse, citaram-no por edital. Constatada a revelia, a Câmara Municipal proferiu seu veredito, casando-lhe o mandato”.

 

O advogado Pedro Moura Palha, que fora político do PSD, partido (extinto pelo regime militar) que fora adversário do PTB (no qual Elias Pinto iniciara sua carreira política, em 1955, como deputado estadual), impetrou mandado de segurança. Em Santarém havia apenas dois juízes, um deles de férias ou de licença e o outro afirmou impedimento ou suspeição.

 

O pedido percorreu mais cinco comarcas, sem encontrar um julgador disposto a enfrentar o desafio, decorrente do evidente interesse dos políticos do regime estabelecido em 1964 de tirar a oposição do comando dos segundo mais importante município do Estado, o terceiro da Amazônia.

 

O desembargador ressalta: “É oportuno dizer que, àquela época, o Judiciário não gozava de autonomia istrativa, porque era o Governador que escolhia os juízes para efeito de remoção ou promoção. Por isso, ninguém queria se incompatibilizar com o Governador”.

 

Diante da procrastinação na tramitação do processo, Moura Palha, “imaginando que o processo fosse bater no Maranhão, reclamou ao Tribunal, que atribuiu o feito ao Juizado dos Feitos da Fazenda de Belém, eu, no caso”.

 

Christo negou a liminar e solicitou informações à Câmara de Santarém. Recebendo o que pedira, abriu vista ao Procurador Geral do Estado, “que bravamente opinou pela concessão do mandamus, ainda que por motivo errôneo, por ser matéria de competência eleitoral e não era”.

 

Christo percebeu que a sua decisão “seria um salto além as minhas forças mas que, no regime militar vigente (1967), eram restritas as garantias da magistratura, podendo apenas ser examinadas as chamadas formalidades extrínsecas da questão. Entretanto, pensei que era uma missão a que Deus me destinara”.

 

Analisando a causa detalhadamente, o juiz verificou que “as citações do acusado eram inválidas, principalmente as ‘do edital’, que não lhe assegurava a plenitude do direito de defesa. Ora, se era permitido pela legislação da época o exame apenas das formalidades extrínsecas, a maior dessas formalidades é a defesa, sem a qual não há o contraditório, nem justiça e, ainda, por se tratar de uma causa permeada de viés político, deferi a medida pleiteada, reintegrando o paciente como Prefeito de Santarém, independentemente de processo penal, a que ele respondia em Óbidos”. O despacho foi dado em 12 de setembro de 1968.

 

Os vereadores da Arena de Santarém, porém, não acataram a ordem, “interpretando que o impetrante estava dependendo do processo de Óbidos, o que era uma aberração, pois independia disso, dizia a sentença. O certo é que ele devia ser logo reintegrado, Isso reafirmei pessoalmente aos que me procuraram”, relembra o então juiz.

 

O prefeito Elias Pinto levou o mandado a Santarém. Como o presidente e o 1º secretário da câmara tivessem saído da cidade, que já era ocupada por soldados da Polícia Militar, mandados de Belém por ordem do governador Alacid Nunes, para reforçar o contingente, a ordem foi recebida pelo 2º secretário. João Marques Menezes. No dia 18, ele reuniu a câmara e reintegrou nos cargos o prefeito e o vice-prefeito, Joaquim de Oliveira Martins, marcando a posse para o dia seguinte.

 

A partir daí, nem a ordem judicial nem o ato do poder legislativo foram respeitados. “Então, o brigadeiro Haroldo Veloso (eleito Deputado Federal [pela Arena], com prestígio próprio e, em contrapartida, com apoio recíproco do prefeito Elias Pinto) decidiu apanhar no Cartório o ofício meu que reiterava a reintegração. Reuniu uma multidão e conduziu consigo o prefeito a ser empossado, enquanto um pelotão da Polícia Militar, posto à disposição da Câmara, reagiu à bala, matando três pessoas do povo e ferindo gravemente o Brigadeiro, motivo por que todas as vezes que me refiro a esse episódio, uno minhas mãos para pedir a Deus, se tive a mínima parcela de culpa”, confessa.

 

Depois das mortes, o prefeito foi definitivamente afastado com a cassação do seu mandato e dos direitos políticos, os crimes praticados (por ordem direta do governador, segundo a conclusão da investigação realizada pela Câmara Federal, através do deputado Dnar Mendes, da própria Arena) e até o processo desapareceu, “após o despacho do Presidente do tribunal, desembargador Agnano Lopes, que “suspendeu o efeito da minha sentença”,

 

Fazendo um balanço desse episódio, Christo Alves conclui que “bem poucos magistrados de um ado recente aram pelo ostracismo que me aconteceu. Tudo me era negado, até o parto de minha mulher, que poderia ser financiado pelo Tesouro do Estado, como acontecia com outros colegas, para desconto em folha, me foi negado. Três anos de absoluta discriminação sofri”.

 

Por três vezes, Christo figurou na lista de promoções ao desembargo por merecimento e foi recusado. “Na última, quando tive os votos de 14 dos 15 desembargadores, tendo o 15º justificado que não sufragara meu nome porque o Governador não me nomearia”.

 

Tempos depois, “quando estive à morte, padecendo de uma doença fulminante (inflamação dos canais biliares), nem assim o Poder se apiedou de mim, na ocasião em que minha esposa, professora do antigo Colégio Lauro Sodré, requereu licença para acompanhar o meu tratamento, pois era ela quem me dava os alimentos, com as mãos. Esse direito, líquido e certo, foi indeferido por decisão da médica perita, que tinha parentesco com políticos influentes de Santarém”.

Quando o massacre de Santarém ainda ecoava, o nome de Christo Alves teria sido enviado a Brasília para ser cassado, o juiz diz que ouviu dizer que o próprio governador Alacid Nunes me defendeu, dizendo ao Presidente [marechal Costa e Silva] que eu não era nem comunista, nem desonesto”. Christo agradece a Deus, “que não sou vingativo, e por isso, o Governador da época, hoje falecido, e eu voltamos a ser amigos”.

 

Não há qualquer referência escrita (muito menos documental) sobre esse suposto episódio. Nem o comportamento de Alacid Nunes sugere que de fato existiu. A crença do desembargador pode ser atribuída a um excesso de boa-fé.




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